“Como se fosse uma viagem sobre si próprio, sobre os temas da sua poesia”, disse à agência Lusa o ex-jornalista Rui Lagartinho, que selecionou os poemas e fez a dramaturgia. Apenas o primeiro e último foram escolhidos pela encenadora Ana Nave, como se de um "prólogo e epílogo se tratasse", e que depois trabalhou com Maria João Luís, com quem cointerpreta o espetáculo que vai estar em cena até domingo, no Jardim de Inverno do S. Luiz.

Nascido da vontade da encenadora trabalhar sobre a poesia de Ruy Belo, Rui Lagartinho levou a viúva do poeta, Teresa Moura Belo, a assistir a um espetáculo gizado juntamente com Ana Nave, a partir da poesia de Alexandre O´Neill, levado à cena, em 2015, também no S. Luiz.

A viúva do escritor nascido em S. João da Ribeira (Rio Maior), em 1933, entusiasmou-se com a ideia e foi a primeira a dizer "avancemos".

Levar um espetáculo à cena leva algum tempo - há que encontrar os parceiros ideais, a equipa criativa, o espaço certo e os teatros fecham cada vez mais cedo a programação das temporadas -, e este trabalho acabou por só se concretizar agora, mais de um ano depois da morte de Teresa Belo.

Trazer a escrita de Ruy Belo, que “mais do que esquecida, é hoje pouco conhecida”, para a atualidade e mostrar também o homem que era o poeta que morreu em 1978, o que faz com que se tenha "hoje uma memória difusa dele", foi outro objetivo do espetáculo, disse.

Por isso, tentou que a seleção de poemas integrasse algumas das histórias que Teresa Moura Belo lhe fora contando do marido, integrando também o poeta e os poemas no tempo em que viveu, acrescentou Rui Lagartinho.

Daí que o espetáculo junte poemas muito marcados pelos anos 1960, pela vida da época, e ainda que mostre o lado “etéreo” da poesia de Ruy Belo deixa um pouco de lado o facto de ter sido um poeta marcado pelo catolicismo e o facto de ter pertencido à Opus Dei, uma vez que isso já é sabido, observou.

“Para muita gente vai ser uma surpresa estes poemas mais banais”, porque o Ruy Belo “também é um poeta do domingo à tarde, das ruas e das casas”.

A noção da finitude do ser humano e de todos os elementos naturais continuarem a existir após a morte do homem foram pressupostos da poesia de Ruy Belo que também não estão ausentes do espetáculo.

Daí que neste espetáculo esteja também muito presente o tempo enquanto algo que não se consegue agarrar, disse.

Num cenário de três telões onde se vão projetando imagens a preto e branco, os adereços resumem-se a dois pares de sapatos, de um lado do palco. Do lado oposto, uma mesa de apoio ao músico José Peixoto, que ao longo do espetáculo vai tocando música ao vivo, e outro par de sapatos.

Vestidos de cinzento, atrizes e músico iniciam o espetáculo descalços para, enquanto este dura, os irem calçando e descalçando, sempre de forma compassada.

“É uma coisa que muita gente esquece, é que a gente habita uns sapatos”, afirmou Rui Lagartinho. “Leva-se uma vida para se calçar uns sapatos”, sublinhou Ana Nave.

Tal como os sapatos são a finitude e a efemeridade da vida humana no espetáculo também o facto de este começar e acabar no mesmo local do palco pode associar-se ao fim do ciclo da vida. E ao facto de Teresa Belo ter, ao longo de 40 anos de viuvez, "calçado os sapatos" do marido e divulgado a obra, frisou Rui Lagartinho.

“Certas formas de nojo”, “Espaço preenchido”, Povoamento”, “Elogio a Maria Teresa”, “Um dia não muito longe, não muito perto” são alguns dos poemas que integram o espetáculo e são ditos à vez pelas atrizes.

A duas vozes ouve-se apenas "Algumas proposições com pássaros e árvores que o poeta remata com uma referência ao coração” num espetáculo que Ana Nave no qual foi trabalhando e criando uma rotina juntamente com Maria João Luís.

Rotina que a encenadora gostava que fosse "uma passagem de tempo dentro deste espaço que é uma bolha, que tem esta melancolia que está sempre presente no Ruy Belo”, explicou.

"O tempo que é uma constante, que passa, que é só este bocadinho, o tempo de nos vestimos, o tempo de calçar os sapatos, e já acabou”, enfatizou, acrescentando que dar voz ao poeta foi também um dos motores do trabalho.

Tempo do efémero que, além de ser marcante na poesia de Ruy Belo, “liga muito bem com o teatro”, que é muito "um encontro com as pessoas sobre a efemeridade do que fazemos”, justificou.

Também por isso o espetáculo está construído como um movimento circular, de coisas banais que se repetem no tempo da existência, como o vestir e despir das camisas que as atrizes fazem em cena.

“Odeio este tempo detergente” é um espetáculo que se vê ao mesmo tempo como se se estivesse a ver por dentro o que as atrizes estão a pensar e a tentar dizer e a tentar desenrolar as coisas, afirmou Rui Lagartinho.

Ideia que vai ao encontro de Ruy Belo quando escreveu “eu não digo o que sinto mas sirvo-me do que sinto para dizer alguma coisa”, explicaram Ana Nave e Rui Lagartinho.

Para a encenadora, este é um espetáculo sobre "uma bolha de não estar em sítio nenhum, mas quando se sai de lá sentir que houve ali um espaço".

Já para Maria João Luís, trata-se de um “acontecimento”.

Por voltar a trabalhar com Ana Nave, com quem já não trabalhava há 30 anos, por a “admirar” como atriz e pessoa, "por ter ideais e princípios", o que "explica ter ido buscar a poesia de Ruy Belo para por em palco".

“Quem é que quer agarrar num poeta destes para cena?”, questionou. “Só esta geração já em resquícios de uma gente que apanhou com isto”, respondeu, de imediato.

Um espetáculo que Maria João Luís diz ser "talvez, politicamente, um dos mais importantes" em que já participou.