"Ao convidarmos a língua árabe é a primeira vez que sentimos que há muitos franceses que vêm a Avignon para estarem mais próximos de casa”, frisou Tiago Rodrigues em entrevista por telefone à agência Lusa, numa alusão ao facto de o árabe ser a segunda língua mais falada em França.

“São essas as razões fundamentais pelas quais convidamos a língua árabe ao Festival de Avignon”, disse Tiago Rodrigues, acrescentando que, “em primeiro lugar”, a língua árabe “é a quinta língua mais falada no mundo” além de que possui “uma riqueza patrimonial enorme, e também uma enorme diversidade contemporânea”.

"Convidar a língua árabe é convidar toda essa diversidade e recusar essas visões estreitas”, afirmou Tiago Rodrigues, admitindo que foram “avisados muitas vezes" para terem "cuidado com a língua árabe": "'Vocês vão ter problemas'”, citou.

“E foi precisamente por isso que quisemos continuar", sublinhou, alegando que "não convidar a língua, devido a problemáticas e complexidades políticas ligadas a essa língua seria fazer autocensura”.

Seria “uma forma de censura e de aceitar que a língua árabe seja metida na gaveta de uma visão estreita, xenófoba, como se fosse uma língua inimiga”, prosseguiu, sustentando que “a língua árabe, como todas as línguas, é uma fonte de riqueza que tem de ser descoberta, mesmo quando consideramos que estamos a descobrir qualquer coisa que está longe de nós”.

Tiago Rodrigues afirmou ainda que, ao contrário do que aconteceu nas últimas duas edições do festival, em que as línguas convidadas foram a inglesa e a espanhola, e descobriram que "o povo ia a Avignon porque lhes parecia uma coisa exótica, distante”, com a língua árabe, a segunda mais falada em França, surgiu "uma coisa nova”: “Temos muitas francesas e muitos franceses que vêm a Avignon para descobrir a língua árabe que lhes é próxima, para estarem mais perto das suas raízes, da sua cultura”, revelou à Lusa.

Com 12 espetáculos na língua convidada, o diretor do Festival disse que ao mesmo tempo "há um público que vem e quer descobrir, quer mergulhar" nesse universo, dando como exemplo o concerto “La voix des femmes”, assente no repertório e nos poetas de Oum Kalthoum, cantora e compositora egípcia que morreu há 50 anos.

"Poderíamos quase falar das línguas árabes, a tal ponto é uma língua diversa e se transforma quotidianamente”, disse Tiago Rodrigues à Lusa, frisando que o árabe, do ponto de vista histórico, é uma língua de “diálogo de transmissão, de invenção”.

“Muito mais do que aquilo que por vezes visões mais estreitas e demagógicas e xenófobas nos querem fazer acreditar para melhor nos manipular”, sublinhou, notando ainda que o árabe é “uma língua de todas as convicções e de todas as confissões”.

Ao ser falada por “gente de todas as convicções e confissões” é também uma língua “que está ligada a muitos países do mundo árabe onde há uma enorme riqueza de artes performativas, seja de teatro, dança, música e que são a razão fundamental pela qual convidamos a língua árabe”, reiterou.

Tiago Rodrigues argumentou ainda que o Festival d’Avignon é também um local de “debate do mundo, através da criação artística ou através do debate político”, que está muito presente no certame, nomeadamente no espaço Café das Ideias, onde os fenómenos contemporâneos dão temas de conversa.

“Inevitavelmente, convidando a língua árabe nós não esquivamos ou não tentamos esquivar às complexidades políticas que vêm com esta língua. Pelo contrário, tentamos criar um contexto de diálogo, democrático, cordial, para poder debater essas complexidades, e é por isso também que convidámos o antigo embaixador da Palestina na UNESCO, o poeta e tradutor Elias Sanbar, a vir falar”, argumentou Tiago Rodrigues.

Sem descartar que “o que os crimes de guerra que se passam em Gaza serão assunto de discussão”, o diretor do festival referiu que serão também abordadas “outras complexidades que às vezes não estão nas primeiras páginas dos jornais”.

Entre estes temas está o facto de a língua árabe “ser a segunda mais falada em França” e “que interessa muito aos franceses”, pelo que, no Café das Ideias, haverá uma conversa com o jornalista e realizador libanês Nabil Wakim, em torno do ensino do árabe no sistema de ensino público em França.

Wakim explicará também como este ensino “podia ser melhorado para que muitas francesas e muitos franceses, que têm raízes em países do Magreb, sobretudo, mas também no Médio Oriente, 'não sejam analfabetos na sua língua materna'”, disse Tiago Rodrigues parafraseando o jornalista.

“Todas estas complexidades culturais, políticas nos interessam a partir do momento em que podemos criar espaços de diálogo, de escuta, de pensamento dentro das regras da democracia e dentro daquilo que pode ser a oferta fundamental que me parece que o Festival d'Avignon faz, e que faz também convidando a língua árabe,” observou o diretor do Festival, acrescentando que este oferece ao público a descoberta da criação artística, “mas, acima de tudo, uma enorme diversidade de experiências, de estéticas e, portanto, uma enorme diversidade de visões do mundo”.

E isto é tanto mais importante quanto as sociedades europeias – “tanto pode ser a francesa, como a portuguesa” – “precisam urgentemente de espaços que respeitam a diferença, que tratam a diversidade como um tesouro e o desacordo como uma coisa positiva”, defendeu Tiago Rodrigues.

“Eu não tenho que ver o mundo como outra pessoa para podermos ter um diálogo frutífero. Pelo contrário, é melhor que vejamos o mundo de forma diferente para podermos dialogar e para podemos descobrir o outro, outras formas de pensar o mundo, de participar no mundo”, concluiu.