
Nota: antes de ler este artigo, recorde como começou a história musical de Bryan Adams nos capítulos anteriores deste especial:
Editou cinco álbuns nos últimos anos ("Pretty Woman - The Musical", "So Happy It Hurts", "Classic", "Classic Pt. II" e "Cuts Like A Knife – 40th Anniversary, Live From The Royal Albert Hall"), mas nenhum se ouve na rádio. A “geringonça” em que se tornou a indústria discográfica com as fusões, aquisições e desmembramentos-remédio ocorridos desde que se fundou, será uma das razões, mas não é a única explicação; porque não há só uma.
1983, ano de resistência e afirmação
A imprensa de referência esteve “do contra” desde o primeiro dia, recusando dar-lhe crédito e catalogando-o como uma versão de Bruce Springsteen e John Mellencamp fabricada para os fãs do “Album Oriented Rock” professado pelos Journey ou Foreigner. Mas se nos Estados Unidos, Canadá e Japão o “Groover from Vancouver” já ganhara estatuto de “Platina” ultrapassando o milhão de álbuns vendidos, 3 singles no top e mais de 150 concertos por ano - incluindo a abertura para plateias gigantescas com os Journey ou os Foreigner - na Europa estava tudo no começo.
Jim Vallance descreve a diferença de condições de trabalho ao recordar no seu site um episódio da jornada criativa do quarto álbum, “Reckless”: "Sempre que o Bryan estava em digressão, eu preenchia o tempo a escrever com outros artistas (38 Special, Aerosmith, etc). No outono de 1983, quando estava prestes a embarcar para Europa, o Bryan começou a insistir que eu o acompanhasse, para que pudéssemos passar cada minuto livre a escrever músicas.
Eu sei o quão agitadas as digressões podem ser e disse-lhe que seria uma perda de tempo, mas ele insistiu que haveria muitas oportunidades para trabalhar na música e nas letras enquanto viajávamos de cidade em cidade. Acabou por me cansar e concordei em ir.
A 11 de setembro de 1983 voei de Vancouver para Londres para iniciar uma viagem que incluiria Frankfurt, Hamburgo, Dortmund, Amsterdão, Paris, Oslo, Copenhague, Estocolmo, Gotemburgo, Londres, Manchester e Sheffield.
A maior parte das viagens entre as cidades acontecia em autocarros alugados, que geralmente saíam depois do concerto (meia-noite) e chegavam à cidade seguinte na manhã seguinte. Mas de alguma forma foi reservado um autocarro errado que não tinha beliches; foi alugado um autocarro comum e tínhamos de dormir sentados, o que resultava em pouco sono, se é que havia algum. Também era muito frio e todos se revezaram a contrair gripe.
Como previ, o itinerário de Bryan foi extremamente ocupado, com uma agenda rigorosa de visitas às estações de rádio e entrevistas à imprensa em cada cidade. Durante os trinta e um dias em que estive na digressão, tivemos apenas duas breves oportunidades de escrever: uma vez num quarto de hotel em Amsterdão e uma vez nos bastidores antes de um concerto em Gotemburgo, na Suécia... cerca de 30 minutos de cada vez.
Mas houve um lado positivo: conseguimos completar uma ou duas linhas da letra de "She's Only Happy When She's Dancin" e também tive a oportunidade de testemunhar uma incrível reação do público durante um concerto em Sheffield, Inglaterra. A sala (do tamanho de um ginásio escolar) estava tão quente e húmida que a condensação literalmente chovia do teto. Perto do final do concerto, a multidão começou espontaneamente a cantar um hino de futebol, o maior elogio que um público europeu pode prestar a um artista. Acredito que foi a primeira vez que isso aconteceu com Bryan, e sei que o espetáculo em Sheffield continua a ser um destaque do início de sua carreira".
Quando Jim Vallance e Bryan Adams relatam que levaram um ano a escrever “Reckless”, em sessões diárias de 8-12 horas, até são capazes de pecar por defeito. Não foram 12 meses, ou 52 semanas, ou 365 dias consecutivos, mas sim espalhados no tempo, logo a partir do momento em que o álbum anterior foi terminado. O primeiro single “Run To You”, por exemplo, foi escrito em janeiro de 1983 (imediatamente antes do arranque da digressão de “Cuts Like A Knife”) a pedido do produtor Bruce Fairbairn. Era para os Blue Oyster Cult, mas a banda recusou-o. O dedilhado de guitarra do início da canção é claramente inspirado em “Don’t Fear The Ripper”, o maior sucesso dos Blue Oyster. Por outro lado, “Heaven” não só foi escrita em 1983 como gravada a 6 e 7 de junho desse ano, ou seja, quase um ano e meio antes de sair no álbum “Reckless”. Foi gravada na Power Station de Bob Clearmountain em Nova Iorque, entre dois concertos de estádio da tour com os Journey; “Faithfully” o single dos Journey, foi uma das inspirações e é mesmo o seu baterista quem toca a bateria do tema. A canção fora encomendada pela 20th Century Fox para o filme “One Night In Heaven”, com data de estreia para o Natal desse ano. Um rotundo falhanço de crítica e de bilheteira quase lhe ditaram um fim precoce.
Seja como for, o que mais impressiona é que, no meio de um ritmo de trabalho avassalador permeado por constantes viagens entre Vancouver e os concertos nos Estados Unidos, nascessem canções do calibre que iria pautar o quarto álbum. Mas Bryan não queria parar. Havia a sensação de que a qualquer momento a maré pudesse mudar com uma simples alteração nos quadros da A&M Records ou a mudança de gostos e tendências dos “media”. Mas a principal razão era porque, apesar do mais de 1 milhão e meio de discos vendidos e centenas de concertos tocados, no final de 1983 Bryan Adams tinha apenas ganho o suficiente para pagar a renda e comprar um Volkswagen Beetle. Em segunda mão. Quando o mencionou ao manager recebeu como resposta a verdade inconveniente. “Bruce, não fui pago por isto” - disse Bryan quando recebeu o galardão de “Platina” das mãos dos executivos da editora. “Pois não, nem vais ser” - respondeu Bruce Allen. “Eles ficaram com o dinheiro. Andaram três anos a pagar tudo o que fizeste. É melhor escreveres outro álbum.”

Finalmente, a 7 de dezembro de 1983, a “Cuts Like A Knife Tour” é encerrada no Royal Theatre de Victoria, Columbia Britânica, Canadá. A banda tira férias, mas Bryan não e a escrita definitiva de “Reckless” arranca imediatamente, já com 3 canções em carteira: “Run To You”, “Heaven” e “One Night Love Affair”. Mas é constantemente interrompida tanto pela editora como pelo “management”, decididos a capitalizar e estender o sucesso de “Cuts Like A Knife”. Jim Vallance conta no seu site: "Em janeiro de 1984, Bryan e eu decidimos escrever canções para "Reckless". Com a digressão concluída, os membros da banda de Bryan dispersaram e o baterista Frankie LaRoca voltou para sua cidade natal, Nova Iorque, para gravar com o seu grupo Scandal.
Então, do nada, em fevereiro de 1984, Bryan foi convidado para abrir para os The Police na etapa final da sua “Synchronicity Tour” (Havai, Nova Zelândia e Austrália). Três dos membros da banda de Bryan moravam em Vancouver e estavam prontamente disponíveis, mas o baterista LaRoca estava em Nova Iorque, no meio do álbum dos Scandal, e não conseguiu. Bryan estava desesperado por um baterista.
Eu toquei bateria em todas as “demos” do Bryan e ele sabia que eu estava familiarizado com os arranjos e, se necessário, poderia substituir o baterista LaRoca com um mínimo de ensaio. Fiz o teste e consegui o emprego!
Depois de alguns dias de ensaio, voámos de Vancouver para o Havai para um concerto no Aloha Stadium, em Honolulu, a 25 de fevereiro de 1984. Depois, foi um voo noturno de 8 horas da Quantas para a Nova Zelândia, onde nos apresentámos a um grande público ao ar livre no Western Springs Stadium, perto de Auckland (29 de fevereiro). No dia do concerto em Auckland, Bryan e eu fomos à praia com o Sting e este aceitou uma oferta de "para-vela" (onde o piloto é amarrado a um arnês e suspenso por um paraquedas rebocado por um barco). Infelizmente, o vento aumentou dramaticamente e houve alguma dificuldade em fazer o Sting voltar a descer. Foi forçado a permanecer no ar por mais de uma hora, e acho que ficou um tanto abalado com a experiência (embora não tão abalado quanto Bryan um ano depois, quando seu paraquedas ficou preso nas suas próprias pernas após saltar de um avião. O paraquedas de emergência lá se abriu após uma queda livre não planeada de 24 segundos).
As duas últimas apresentações dos Police foram em Sydney e Melbourne (2 e 4 de março de 1984), com 50.000 e 60.000 pessoas presentes, respetivamente. Foi uma experiência incrível, que nunca esquecerei!
O mais notável de tudo foi a oportunidade de ver a atuação dos Police “de perto”. Em cada um dos quatro shows fiquei ao lado do palco, a menos de 6 metros da banda. Eles foram absolutamente fenomenais... Nunca vi nada igual! Eram firmes, enérgicos, poderosos e as performances eram tão próximas da perfeição quanto humanamente possível.
Quatro anos antes, Adams e eu tínhamos visto os Police apresentarem-se para algumas centenas de pessoas no Danforth Music Hall, em Toronto (16 de novembro de 1979). Foi no início da sua carreira, entre o primeiro e o segundo álbum. Já eram bons naquela época, mas agora eram um ator importante no pico de forma, numa das últimas atuações como grupo.
Os Police reformaram-se em 1986 para três apresentações da Amnistia Internacional, mas Melbourne foi o último concerto da sua última digressão oficial. Nos bastidores, após a apresentação, o grupo foi presenteado com um grande bolo de “fim de digressão”. Sting começou a fazer um discurso, depois fez uma pausa no meio da frase e jogou o bolo inteiro na cabeça de Stewart Copeland. Stewart e Andy Summers pegaram em punhados de bolo e mancharam o rosto de Sting, e uma breve “food fight” começou. Era difícil acreditar nos rumores - se fossem verdadeiros - de que a banda mal se falava e estava ansiosa para seguir caminhos separados.
Após um hiato de 23 anos, os Police fizeram uma digressão mais uma vez. Por sorte, o primeiro concerto da digressão de 2007 decorreu na minha cidade natal, Vancouver, no dia 28 de maio. Como resultado, assisti ao último concerto da digressão anterior em 1984, e ao primeiro espetáculo da nova.

Mas entre os constantes desvios da cave de Jim Vallance as “demos” lá vão sendo gravadas com Bryan e Jim nos instrumentos e o recurso constante a Keith Scott que no videocast de Mitch Lafon e Jeremy White em junho de 2022 revela que a maioria dos “riffs” e solos colocados nas “demos” acabaram por ficar nas gravações finais; as “demos” eram já “templates” do que iria ser o produto final. Na altura os solos de guitarra tanto eram feito por um como pelo outro, mas com o passar dos anos seria Keith Scott a assenhorar-se quase definitivamente da função. Algo praticamente desconhecido é a influência de Billy Idol em “Reckless”. Na mesma entrevista Keith Scott conta que nas digressões com os Journey e os Foreigner perceberam o que era necessário para um bom concerto, o que mantinha a atenção do público das arenas. ‘Não podia ser só uma canção “pop”. Tinha de ser um “show”. A ideia dos guitarristas virtuosos era quase uma exigência e lá ia eu “rasgar” em coisas como “Kids Wanna Rock”, que basicamente roubou toda a sua energia ao Billy Idol. O “Rebel Yell” foi altamente influente no sentido de tentarmos chegar ao nível seguinte, tentar ter as pessoas atentas à energia."
Falidos pela recuperação dos “advances” por parte da A&M Records e pelo investimento em equipamentos recomendados pelo produtor Bob Clearmountain, “Reckless” foi ainda gravado com muito material alugado; nenhum dos “Dudes Of Leisure” ou o próprio Bryan Adams se tornara um “gear snob”, que só toca com determinados instrumentos ou amplificadores. Em “Reckless” Keith Scott conta que até a viola-baixo de Nile Rodgers entrou. "Gravámos as “basic tracks” nos Little Mountain Studios de Vancouver e depois fomos para a Power Station de Nova Iorque, onde o Bob Clearmountain trabalhava. Lembro-me de irmos para a sala de cima fazer uns “overdubs” e encontrei a famosa “strat” do Nile Rodgers num armário. Usávamos o que houvesse porque mesmo nos músicos que idolatro nunca achei que fosse uma questão de equipamento, mas sim a ideia subjacente e os dedos. O Stevie Ray Vaughn só usou uma guitarra na maior parte da sua carreira. O Jimmy Page, duas. Há alguma coisa melhor do que os primeiros discos dos Zeppelin?". Na mesma entrevista, Eddie Van Halen vem à baila quando Lafon pergunta a Scott como se sentiu quando, nos anos 80, o super-guitarrista o apontou como um dos melhores. Na sua habitual modéstia Keith Scott diz que o deve ter confundido com outro. Na verdade, não eram amigos, mas conheciam-se. “Sei que ele disse coisas e aparecia, era fã do Bryan, adorava a voz, ficava nas laterais do palco a ver. Era um tipo normal e fantástico, que me perguntava o que estava a usar. Ouvi falar do comentário numa publicação qualquer, que tinha falado de mim, agradeci-lhe na altura, que foi no final dos anos 80. Era um tipo normalíssimo, obviamente intimidante pelo seu papel na guitarra elétrica dos últimos 40 anos. Não te esqueças que no final dos anos 70 dizia-se que o rock e as guitarras estavam mortas. Acho que até o Springsteen disse isso. E depois regressou com um espírito de vingança. Ozzy com o Randy Rhoades, o Eddie, os AC/DC com o “Back In Black”. Não! Vai regressar para vos apanhar. E veio mesmo. Vês putos no Youtube atualmente, com 10-12 anos, absolutamente a “rasgar”’. O que não conta é que Eddie Van Halen ficava de auscultadores na mesa de som de palco e pedia ao técnico para lhe dar especificamente o canal de Keith Scott".

"Reckless": “Where’s the rock ?!”
Em março de 1984 as gravações de Reckless começam nos Little Mountain Studios em Vancouver com Bryan e Keith nas guitarras, Tommy Mandell nas teclas, Dave Taylor no baixo e Mickey Curry na bateria. Nas consolas estão Bob Clearmountain, Mike Fraser e Bruce Lampcov. Se Clearmountain já era um nome firmado, Mike e Bruce viriam a ser produtores de renome com currículos de luxo. Seis anos depois Mike Fraser produziria os Poison e os AC/DC, enquanto Lampcov seguiria um caminho mais eclético produzindo os Railway Children, Then Jericho, The Stranglers e The The, entre outros. Quando seguem para a Powerstation de Nova Iorque levam 9 canções que Clearmountain considera quase terminadas, mas Bryan estava inseguro, pressionado para superar o sucesso de “Cuts Like A Knife”. Sozinho com Clearmountain, trabalhava no turno da noite - das 18h00 às 6h00 - e dormia no sofá de um amigo não só porque estava farto de hotéis como por uma questão financeira. Indeciso, convoca ao estúdio o manager Bruce Allen, que, após uma ou duas audições, pergunta: “Where’s the rock?!”
Foi o suficiente para parar tudo. Em finais de maio, Bryan regressa a Vancouver e volta aos ensaios com a banda e à escrita com Jim Vallance, balizado pela urgência de manter o prazo de entrega à editora em Setembro, para ser editado ainda a tempo do Natal de 1984. Uma noite em Vancouver, após um concerto do génio eletrónico inglês Thomas Dolby, Jim Vallance troca ideias com Bryan sobre o público não se energizar com a “synth pop”. ‘No fundo’ - dizia Vallance - ‘the kids wanna rock!’ A frase ficou-lhes e “Kids Wanna Rock” nasceu no dia seguinte. Bryan quer gravar imediatamente para manter o “deadline” de entrega do álbum. Consegue a disponibilidade de todos os músicos menos do baterista Mickey Curry, ocupado com os Hall & Oates. O seu substituto na estrada, Frankie LaRoca, também está ocupado com os concertos do seu grupo Scandal. Decidindo consensualmente que não era trabalho para Jim Vallance, Bryan e Keith correm os bares de música ao vivo de Vancouver em busca de um baterista. E numa chuvosa terça-feira entram numa espelunca e descobrem Pat Steward na bateria de um desconhecido duo de ska. É convidado para os ensaios e integra-se bem, reproduzindo os desempenhos já registados por Mickey Curry e indo mais longe quando Bryan o pede. O seu entrosamento com a banda é testado ao vivo nos Texxas Jams de 84, a 8 e 10 de junho de 84 no Dallas Cotton Bowl e no Houston Astrodome. Perante plateias de 70.000 pessoas ávidas para verem Rush, 38 Special, Ozzy Osbourne e Gary Moore, Bryan Adams é o segundo artista a pisar o palco e Pat passa o exame. As coisas correm bem e quando reservam os Little Mountain Studios para um fim de semana em que Bob Clearmountain vem expressamente de Nova Iorque, gravam a novíssima “Kids Wanna Rock” e regravam “Summer Of 69” e “One Night Love Affair”. Pat tinha 22 anos e a sua energia ska/new wave trouxeram aos temas a pujança “rock” que Bryan procurava.

Se os percalços punham em risco a data de edição planeada, traziam, porém, mais vantagens. Além da nova força dada a estes três temas, havia outro que Clearmountain e Vallance também consideravam pronto, mas que Bryan sentia que necessitava de outra abordagem. Em setembro de 2023, recordou à Classic Rock Magazine: "Estava na Powerstation a gravar o “Reckless” quando recebo uma chamada do produtor John Carter. “Estou a produzir a Tina Turner. Tens alguma canção para ela?” Disse-lhe que não, mas que talvez ela pudesse cantar no meu disco. Mandei-lhe o “It’s Only Love” e nunca mais disseram nada’.
Em junho, percebi que ela ia estar em Vancouver no fim do mês a abrir para o Lionel Richie e entrei em contacto com o management a repetir a mensagem. “Será que ela quer gravar esta canção”? E eles responderam: “A Tina Turner quer conhecer-te”. E lá estou eu nervosíssimo no backstage do Pacific Coliseum de Vancouver quando ouço “Onde é que ele está, quem é ele?” E alguém disse “é aquele merdinhas magricela no canto”. Chegou ao pé de mim e disse “adoro a canção”. Podes gravar amanhã? E gravou. Não foi fácil porque não tinha sido escrita para ela, estava no meu tom e não no dela. Tinha 24 anos e tive de lhe dizer “Tina, não está a funcionar a cantares a minha melodia. Que tal fazeres assim?” E pus me a cantar aquilo que achava que ela devia cantar. Ela não ligou nenhuma e regravou como quis. Depois de se despedir, virei-me para o Bob Clearmountain e disse: “Diz-me que temos isto em fita!”. Andámos para trás e lá estava, aquele momento sensacional”".
Em setembro, o disco é finalmente fechado, misturado por Clearmountain e masterizado pelo reputado Bob Ludwig na Masterdisk. Entre Londres, Los Angeles e Vancouver, Steve Barron produz de uma assentada vídeos para cinco canções do disco e o plano original é cumprido: a 18 de outubro é lançado o primeiro single “Run To You” e três semanas depois, no dia em que Bryan faz 25 anos, ”Reckless” está nas lojas. É a primeira edição simultânea de um álbum e um videoalbum.
O cinismo da imprensa americana
A imprensa mais exigente hesita entre “dar o braço a torcer” ou continuar na tentativa de varrer Bryan Adams para debaixo do tapete da irrelevância. Na Rolling Stone o crítico Cristopher Connoly não se compromete, dando-lhe 3 em 5 enquanto se contradiz várias vezes no desprezo do texto acompanhante: "Com a sua voz rouca, o seu som pungente de guitarra e bateria e as suas letras severamente desnutridas, Bryan Adams tem tipicamente produzido o que há de mais próximo do Rock & Roll genérico, com muita excelência formal, mas com pouca originalidade. No entanto, a admirável balada de há dois anos, “Straight from the Heart”, mostrou que Adams poderia convocar as suas habilidades e criar música verdadeiramente comovente. E embora “Reckless”, o seu quarto álbum, não ofereça uma faixa que se compare a essa, é o LP mais satisfatório de Adams até hoje, tanto pelo som geral quanto pela força de qualquer uma das suas faixas individuais.
Os coprodutores Bob Clearmountain e Adams refinaram uma versão frágil e menos blues do som que Don Gehman e John Cougar Mellencamp desenvolveram ao longo dos anos, e é muito difícil resistir, mesmo quando falta uma música. A dívida com o trabalho de Clearmountain em “Tattoo You”, dos Stones, é bastante clara no festivo "She's Only Happy When She's Dancin'". O single de sucesso "Run to You" soa mais completo, mas a banalidade da letra ("Eu sei que o amor dela é verdadeiro / Mas é tão mais fácil fazer amor contigo ") aponta a maior deficiência de Adams e do coescritor Jim Vallance. Achar-se-ia, por exemplo, que eles poderiam ter feito um apelo mais salubre às armas da AOR do que o reacionário "Kids Wanna Rock", um hino para-tirar-aquela-música pop-do-meu rádio que é mais fraco do que o subvalorizado “It’s Still Rock’n’roll To Me”, de Billy Joel.
Algumas letras igualmente grosseiras não conseguem abalar totalmente o vigor de "Summer of '69". Ainda assim, para alguns bate-estacas antiquados, é melhor ouvir Adams envolver-se na melodia ansiosa de "One Night Love Affair" e "It's Only Love", em que troca versos com a vocalista convidada Tina Turner. Para os fãs de cascalho sobre veludo, “Reckless” oferece uma bela balada, “Heaven”, mas que foi um sucesso no ano passado na trilha sonora de um filme. Ah, bem – no momento em que escrevo, “Reckless” é o LP tocado com mais frequência nas rádios, e com seu belo som pelos números, não é de admirar. Procurando desafio, aventura, emoção? Junte-se à Marinha." (Rolling Stone 439)
É fácil perceber a malícia preconceituosa com que o jornalista abordou a missão de escrever sobre “Reckless”, cujos resultados, por exemplo, negariam por completo a afirmação de que nenhum tema superava “Straight From The Heart”, o single “puxa-carroça” do álbum anterior: “Reckless” traria nada mais nada menos do que 6 singles, 3 dos quais o superaram em vendas. E achar que algum “airplay” a “Heaven” entre os radialistas já indefetíveis significa sucesso esquece que tanto o filme “One Night In Heaven” como a banda sonora foram gigantescos “flops”. Mas, como temos visto nesta saga, há muito que Bryan Adams desistira da imprensa escrita em prol da criação de canções eternas que pusessem o maior número de pessoas a cantar. E se nos Estados Unidos a rádio americana começara por lhe fazer a vida difícil, depois do sucesso do anterior álbum “Cuts Like A Knife” já não havia dúvidas nos tímpanos dos programadores americanos.
Mas também há muito que o “Groover from Vancouver” sabia que tinha de ser paciente e relativizar, tirar os olhos do umbigo e olhar para a floresta e não para árvore. E a floresta de edições de 84 tinha sido das mais frondosas e luxuriantes da década: “Born In The USA” (Bruce Springsteen), “Purple Rain” (Prince), “Like A Virgin” (Madonna), “1984” (Van Halen), “Footloose” (Banda Sonora) e “Private Dancer” (Tina Turner) foram só alguns dos álbuns lançados nesse mesmo ano e cuja exploração de singles continuava a decorrer e a monopolizar as ondas de rádio pela América do Norte. Só de Springsteen, ainda os singles de maio (“Dancing In The Dark”) e julho (”Cover Me”) estavam em playlist e em outubro já o single “Born In The USA” chegava às mesas dos programadores. Dos Van Halen, depois de “Jump”, “I’ll Wait” e “Panama”, era a vez de “Hot For Teacher”. De “Private Dancer” Tina Turner já lançara quatro singles e acabara de enviar aos programadores o tema-título. Ou seja, Bryan Adams e “Reckless” enfrentariam alguma da mais possante concorrência no mercado musical dos anos 80.
“Run To You” - O primeiro tiro na “mouche”
Mas na América e no Canadá “Run To You”, o primeiro single, é imediatamente abraçado pelas rádios de formato rock e, fortemente divulgado na MTV, vê o seu duplo sentido “matar dois coelhos de uma assentada”: agarra o público mais velho de consagrados “message rockers” como Springsteen e Mellencamp enquanto a energia “hard rock” das guitarras de Adams e Scott atrai também os fãs de Van Halen e dos “guitar heroes” etariamente mais próximos do seu público: Bryan Adams tinha 25 anos, feitos no dia em que “Reckless” foi editado; Springsteen tinha 35. No vídeo de “Run To You”, enquanto canta que se a namorada descobrisse que ele tem outra paixão talvez não lhe jurasse amor eterno, a paixão não é afinal outra mulher, mas sim a guitarra! O suficiente para atingir todos os pré-adolescentes que ainda nem sequer têm sexo na cabeça e sonham ser “rockstars”, para abraçar todas as mulheres que se enternecem com o facto de um homem achar possível que elas tenham ciúmes de uma guitarra, e também os “rockers” mais empedernidos, rendidos a um “puto” que prefere uma guitarra a uma mulher. Bryan Adams é o “buddy” que se quer ter, um macho alfa que nunca porá as mãos na tua mulher. Três semanas depois de ser lançado “Run To You” estreia-se no top americano em 59.º lugar e vai trepando durante três meses até à sua posição mais alta, sexto lugar, em janeiro de 85. Até lá Bryan ensaia a “Reckless Tour” com os Dudes Of Leisure e cumpre afazeres promocionais como a presença nos Juno Awards a 5 de dezembro. Se em 1983 - depois de dois anos nomeado como “Mais Promissor Vocalista Masculino” - tinha finalmente ganho o prémio “Vocalista Masculino”, em 1984 o álbum “Cuts Like A Knife” tinha-lhe trazido nada mais nada menos do que 7 nomeações para os “Junos”, os prémios anuais da indústria musical canadiana. Ganhou quatro.
A Europa, principalmente o Reino Unido, continuavam a ser a grande “pedra-no-sapato” e Bruce Allen tem instruções específicas para priorizar esse mercado, mas os timings têm de se alinhar e não o estão quando a “Reckless Tour” começa. A ideia de Bryan era começar na Europa para que os concertos gerassem atividade nos media europeus, algo que, depois do sucesso de “Cuts Like A Knife”, já não seria tão necessário nos Estados Unidos e Canadá.
Mas a A&M Estados Unidos discorda e há um grão que trava a engrenagem até ao início de 1985, pelo que a digressão acaba mesmo por arrancar em solo americano a seguir ao Natal de 1984, com uma curiosidade: tanto o álbum como o single “Run To You” estão em 12.º lugar nas respetivas tabelas de vendas dos Estados Unidos a 27 de dezembro, quando a “Reckless Tour” arranca no Aragon Ballroom, em Chicago.

E o que é que estava em cima na mesa? A abertura de toda a digressão europeia de 1985 de Tina Turner, cujo álbum de regresso “Private Dancer” tinha reformado por completo a sua carreira e públicos. O grão na engrenagem? O “Tour Support”. A A&M americana recusa financiar alegando que o público de Miss Hot Legs era mais adulto e menos rock; na América, Tina continuava de facto a cumprir compromissos assumidos antes do manager Roger Davies e o produtor e executivo discográfico John Carter darem a volta à sua carreira. E essa reviravolta começara na Europa com equipas europeias a tirarem Tina Turner do espartilho “oldie” e “rythm’n’blues” numa direção mais pop e contemporânea. Em 1982 Martyn Ware, dos “electro-new wavers” Heaven 17, põe-na a cantar “Ball Of Confusion” dos Temptations, tornando-a um sucesso nas pistas de dança europeias. Uma nova banda liderada pelo pianista Kenny Moore acompanha-a ao vivo levando-a para uma ambiência cada vez mais rock que começa a ocupar salas cada vez maiores na Europa. Nas guitarras, por exemplo, está gente como Phil Palmer (Eric Clapton, Dire Straits), Jimmy Lyon (Eddie Money, Greg Khin Band) ou Jamie West-Oram (The Fixx).
A mesma equipa faz-lhe o single seguinte, uma versão do clássico soul de Al Green “Let’s Stay Together” que é lançada em finais de 83 no Reino Unido e em janeiro de 84 na América. Quando o terceiro single da estratégia - “What’s Love Got To Do With It” - é lançado na primavera de 84, já a Inglaterra a recebia como cabeça de cartaz em salas para 2.000 a 4.000 pessoas e preenchia cartazes em concertos de estádio na Europa continental. Mas nos Estados Unidos continuava no circuito dos casinos ou a abrir para artistas soul e r’n’b como Lionel Richie. “What’s Love...” estreia-se aliás num modesto 92.º lugar em maio de 1984 e demoraria quatro meses a chegar ao primeiro lugar, o único da carreira de Tina Turner. Em Inglaterra é tudo mais rápido: quatro semanas depois de ser lançado “What’s Love Got To Do With It” está no Top 10 inglês e em 2 meses ascende à sua posição mais alta, terceiro lugar. O sucesso inglês influencia o continente europeu, que no outono também coloca a canção entre as 10 mais compradas em mercados gigantes como Alemanha e Espanha.
É obvio que se já lotava salas de 4.000 pessoas antes de “What’s Love Got To Do With It”, o sucesso deste single e do álbum “Private Dancer” agigantaram o auditório. Expor-se perante essa crescente plateia de fãs de pop rock era, para Bryan Adams, a solução para os seus problemas na Europa.
As guerras internas da batalha europeia
A discórdia entre A&M americana e a A&M britânica arrasta-se numa infantil guerra de poder que leva inclusive o escritório inglês a não alinhar nos timings de edição e a usar todos os subterfúgios possíveis para forçar a barra. A edição britânica de “Reckless” é suspensa e mesmo o primeiro single “Run To You” só é lançado três meses e meio depois da data americana, na semana a seguir ao Natal... quando as lojas quase não compram novidades e limitam-se a repor stocks do que mais venderam até 24 de dezembro. Nessa última semana de 1984, só três singles entraram para a lista dos 100 mais vendidos no Reino Unido (incluindo “Run To You”), enquanto as reentradas foram 11. A maioria dos restantes 86 pouco mudou de posição.
Para dificultar ainda mais, exatamente a meio da tournée com Tina Turner, a distribuição da A&M na Europa mudaria de mãos da CBS (futura Sony Music) para a Polygram (futura Universal). Ou seja, já era tarde para ter apoio de quem ia perder os lucros e impossível obtê-lo junto de quem os iria colher com as vendas de discos.
Perante um cenário destes e o quase boicote da sua própria editora qualquer artista desistiria, mas a obsessão de Bryan em vingar-se da profecia do diretor da A&M UK obriga o manager Bruce Allen a empatar a máquina de “booking” o tempo suficiente para só contratualizar concertos na América até finais de janeiro de 85, podendo, caso conseguisse retirar o grão da engrenagem, aproveitar a boleia de Tina Turner no mercado europeu.
A 1 de janeiro de 85, Derek Green - o chefe da A&M inglesa que 2 anos antes dissera a Bryan que ele nunca funcionaria em Inglaterra e na Europa (ver parte 5) - é substituído e as negociações tripartidas entre Bruce Allen e os dois escritórios da editora avançam, comprometendo finalmente o escritório londrino com datas de edição, financiamento de algumas despesas de estrada e investimento em promoção e publicidade, em troca da tour europeia com Tina Turner; além de 15 concertos na Alemanha, 4 na Áustria, três em França, dois na Bélgica, Holanda e Suécia e um na Dinamarca, Finlândia, Holanda, Itália, Noruega e Suíça, a cereja no topo eram mesmos as datas em Inglaterra, entre as quais quatro na Wembley Arena de 12.500 lugares.
Foi uma vitória amarga que obrigou o manager a verdadeiros malabarismos na gestão orçamental com o “Tour Support” vindo apenas da A&M UK. Mas sem a ajuda americana o sacrifício foi gigantesco, como o próprio contou à Music Business Worldwide em janeiro de 2018. “Ganhávamos 1.500 dolares por noite quando podíamos estar a ganhar 15.000 por concerto na América. Houve noites em que pensámos ‘cá estamos outra vez, a fazer primeiras partes’, mas foi um passo-chave. Porque fazíamos o nosso ‘set’ e depois, no dela, ela chamava-o ao palco e interpretavam juntos o ‘It’s Only Love’. Era o nosso ‘selo de aprovação’ da Tina Turner. E a partir daí as coisas arrancaram.”

Mal a situação é desbloqueada “Run To You” começa imediatamente a trepar pelo top inglês atingindo o 11.º lugar a 9 de fevereiro, nunca conseguindo ir mais além. Ou seja: fica à porta do Top 10. Durante um mês não sai do 11.º lugar, mas a data de lançamento de “Reckless” vai derrapando sucessivamente do início de fevereiro para duas ou três semanas depois: a maioria das lojas continuava a fazer balanços e gestão de stocks, apertando com as editoras para aceitarem de volta os “monos” não vendidos no Natal em troca de compra de novidades. A cada novo grão na engrenagem Bryan e Bruce respondiam com mais trabalho, comprometendo-se a com um concerto extra, em Londres, como cabeça de cartaz.
Finalmente, praticamente na véspera do arranque da digressão europeia com Tina Turner, Bryan ilustra a terceira semana em 11.º lugar no top inglês com a sua primeira atuação no Top Of The Pops, o programa de televisão da BBC com o top de vendas de singles. 10 milhões de telespectadores todas as semanas. Duas semanas depois “Reckless” estreia-se na tabela de álbuns da Grã-Bretanha no sétimo lugar, onde se mantém na semana seguinte. Ao todo soma três semanas no Top 10, 12 no Top 20 e quase 1 ano entre os 40 álbuns mais vendidos no Reino Unido, atingindo o “Disco de Ouro” (100.000) a 26 de abril, duas semanas depois de acabar a digressão europeia com Tina Turner e cumprir a promessa à A&M UK: um concerto como cabeça de cartaz no Hammersmith Odeon de Londres. E a vingança serve-se... quente. Não é um concerto, mas sim três. Esgotados!
A batalha pela Grã-Bretanha fora ganha, mas a o que começa mal dificilmente se endireita e o desfasamento do calendário editorial dos singles de “Reckless” entre Inglaterra e América prejudicaria o sucesso de “Reckless” deste lado do Atlântico. A América lançava novo single logo que o anterior começava a descer, estratégia que mantinha “Reckless” em constante exposição na rádio e televisão e as canções a empurrarem-se mutuamente. “Run To You” caiu de sexto (a sua posição mais alta) para sétimo no top americano na última semana de janeiro de 85; quinze dias depois “Somebody” começava a sua ascensão até ao pique em 11.º lugar; começou a descer na segunda semana de abril; na semana seguinte, “Heaven” estreava-se em 52.º para uma caminhada de 9 semanas até ao primeiro lugar em 22 de junho. E aqui nem se esperou que começasse a descer! “Summer Of 69” saíra na data prevista para capitalizar o Verão: meio de junho. Os ingleses editam-no na segunda semana de agosto, já o Verão ia a meio. Para tentar alinhar o calendário a A&M UK nem sequer lança “One Night Love Affair” em single, saltando de “Summer Of 69” imediatamente para o dueto com Tina Turner. Lançado três semanas antes dos Estados Unidos, “It’s Only Love” passa 6 semanas no top de singles inglês e não vai além de um 31.º lugar, mas em Dezembro “Reckless” é finalmente “Disco de Platina” no Reino Unido (300.000 unidades). Tinha sido mesmo uma questão de honra porque nos Estados Unidos não só o galardão de “Platina” valia mais do triplo (1 milhão de cópias) como tinha sido alcançado em 3 meses e ultrapassado várias vezes ao longo do ano. Após o Natal de 1985, “Reckless” ganha na América o seu quarto “Disco de Platina” por mais de 4 milhões de unidades vendidas. Os 300.00 de Inglaterra pareciam uma anedota.
Curiosamente, ao contrário dos Estados Unidos e Canadá, a imprensa britânica não cortou as pernas a Bryan. Foi a BBC que o fez, ao proibir o “airplay” de “Summer Of 69”, por exemplo, impedindo-o de passar do 42.º lugar no top inglês apesar de ter vendido mais de 2,4 milhões de unidades e conquistado “Platina” quatro vezes desde que foi lançado em Agosto de 85. Dave Dickson, um dos mais influentes jornalistas musicais do Reino Unido escrevia na altura na revista “Kerrang”, cujos prémios anuais cimentavam para sempre a reputação de um músico rock. A sua crítica apontava a excelência tanto das canções como da produção e aplaudia as guitarras sonantes, razão, no entanto, que o fazia duvidar que “Reckless” superasse o sucesso de “Cuts Like A Knife”. A verdade é que estava errado e, para além de ainda hoje ser o disco mais vendido da sua carreira, seria mesmo eleito pela sua própria publicação “Disco do Ano” de 1985, à frente de “Done With Mirrors”, dos Aerosmith, “Live After Death”, dos Iron Maiden, “Afterburner”, dos ZZ Top, ou “Misplaced Childhood”, dos Marillion. Para uma revista que na altura se dedicava ao rock mainstream, surpreendia, no entanto, que logo a seguir a “Reckless” estivesse por ali perdido em segundo lugar o álbum “Hounds Of Love” de Kate Bush. Um disco maravilhoso, mas que de rock não tinha uma linha.
Na Alemanha, o mercado mais lucrativo do continente, a mudança da distribuição da CBS para a Polygram significa a ausência de esforço de marketing discográfico até julho de 85. “Reckless” é posto à venda em janeiro, entra para n.º 53 e está em 22.º quando Bryan chega ao país à boleia da “Private Dancer Tour”. Não há capitalização da promoção conseguida pelos concertos efervescentes, cujo ponto alto era o dueto com Tina Turner quase no final. Só a partir de julho, quando a Polygram fica “dona” do catálogo da A&M no continente europeu, é que o disco começa a ser “trabalhado”. A filial alemã lança “Heaven” já com 3 meses de desfasamento da data americana e, apesar de não ir além de um 28.º lugar numa estadia de 10 semanas, leva finalmente “Reckless” a entrar no Top 20 alemão. Acabaria por ser “Disco de Ouro” em 1986, com mais de 250.000 unidades vendidas.
A explosão
De volta aos Estados Unidos após a “Private Dancer Tour” na Europa, Bryan Adams já está como “headliner” no circuito de arenas com 9.000 a 17.000 lugares. Estamos em maio e na sua ausência de dois meses a editora sucedera “Run To You” com a promoção do single “Somebody” e levara “Reckless” a integrar o grupo dos 10 discos mais vendidos n América durante três meses. Já tinha quase 2 milhões de discos vendidos e começara a descer no top, com alguns a vaticinarem que não iria muito mais além.
Mas tanto a editora como o manager Bruce Allen sabiam que havia muito mais para crescer já que, focado na Europa quando lançou o disco, Bryan desleixara o circuito promocional americano. Além disso, acreditava-se que os dois “Discos de Platina” já conseguidos por “Reckless” tinham vindo de um público maioritariamente rock. Se o mercado pop também se rendesse, as vendas seriam imparáveis. O poder negocial também já é maior e consegue mais visibilidade; já não falamos de um “newcomer” do Canadá, mas sim de um “rocker” com provas dadas em dois álbuns multi-platina, sucesso na Europa e selos de aprovação como o de Tina Turner.
O lançamento do single “Heaven” é a arma para invadir o mercado “mainstream”. Faz-se em finais de abril e está no Top 20 em 2 semanas. Nos 6 meses seguintes Bryan toca quase todos os dias percorrendo a América e o Canadá em 110 concertos que mantêm a sua ética de trabalho: não só toca à noite como cumpre sempre a agenda promocional sugerida pela A&M em cada cidade. E era cada vez mais preenchida. “Heaven” furara no “daytime TV” e Bryan começava os dias em entrevistas nos “breakfast shows”. A determinada altura a sua vida entra num turbilhão enevoado e lembra-se mal do Live Aid em Filadélfia a 13 de julho. Tocou ao meio-dia e nem se cruzou com Tina Turner para uma oportunidade única: receber a aclamação ao vivo perante os milhões de espectadores do primeiro evento televisivo global não-desportivo. Tina Turner atuaria no mesmo JFK Stadium de Filadelfia mais de 10 horas depois, em dueto com Mick Jagger. “Kids Wanna Rock”, “Somebody”, “Tears Are Not Enough” e “Cuts Like A Knife” é o repertório escolhido por Bryan e é o simples bom senso que decide a exclusão de “Heaven”. Apesar de ter sido o seu primeiro nº1 na América e ter acontecido apenas duas semanas antes, dizer que se está no céu no contexto da fome em África não seria apropriado. Minutos depois de sair do palco, Bryan já está a caminho de Columbus, Ohio, a 750 quilómetros de distância, onde tem concerto nessa mesma noite. Um vôo de quatro horas que lhe permite chegar, fazer sound-check e tocar.

O ritmo extenuante paga dividendos e a 11 de agosto de 1985 “Reckless” chega finalmente ao primeiro lugar do top americano, mais de nove meses depois de ser lançado. E continua a deitar singles cá para fora. Ainda “Heaven” estava a subir e “Summer Of 69” começara a sua marca no top de singles, chegando a quinto lugar em Setembro. Seguem-se “One Night Love Affair” e finalmente, para o Natal de 85, o “duetão” “It’s Only Love” com "Queen" Tina. No fim do ano Bryan Adams entrava num panteão que apenas incluía Bruce Springsteen e Michael Jackson: eram os primeiros artistas a fazer seis singles do mesmo álbum entrar na lista dos 15 mais vendidos na América.
Mas a espécie de névoa que paira sobre estes seis meses de Bryan Adams é, acima de tudo, uma das suas armas para lidar com o sucesso retumbante que o transformara numa megaestrela. Além de Bruce Allen, a ajudá-lo a manter a sanidade e os pés na terra está Vicky Russell a sua namorada até 1991. Vicki lidava bem com a fama, já que crescera no meio da extravagância do pai, o exuberante realizador inglês Ken Russell. Tornar-se ia pintora e designer de figurinos de teatro e cinema, mas com 13 anos participara como atriz na versão cinematográfica de “Tommy”, a ópera rock dos The Who que o pai levou para o cinema. Encarnou a personagem Sally Simpson, a filha de um reverendo que se torna “groupie”. Em novembro de 2023, Bryan contou à revista Louder que “Vicki era uma ótima namorada e uma personagem fantástica para se ter em digressão. Ela conseguia podia ver a estupidez antes de mim. Alguém chegava e dizia: ‘Ei, muito prazer em conhecer-te!’ E ela simplesmente dizia-me ao ouvido: ‘Idiota!’ Ela era um contraponto perfeito para mim.” Vicki também lidava bem com os absurdos do estilo de vida rock’n’roll. “Enquanto estávamos no palco”, diz Adams na mesma entrevista, “ela ia para o meio da multidão e trazia três ou quatro miúdas que trazia para os bastidores. E quando entrávamos no camarim estavam todas em topless! Brilhante!"
Exausto, é Bryan que decide parar. A “Reckless Tour” acaba em outubro com dois concertos em Osaka e um no célebre Budokan de Tóquio, mas a Austrália e a Nova Zelândia, onde as primeiras partes dos concertos dos Police no ano anterior tinham causado grande impacto, ficam de fora. O álbum tinha ido ao segundo e ao primeiro lugar dos respetivos países e era “Disco de Platina”, mas nem isso o demoveu. Tinham sido cinco anos duríssimos e uma adolescência praticamente perdida em salas de ensaios, estúdios (de gravação, de rádio e de televisão), clubes e salas de concertos. O resultado era um álbum que tinha mais êxitos do que muitos “Greatest Hits” de muitos artistas e desta vez compensou. Desta vez, de volta a Vancouver Bryan não se limitou a comprar um Carocha em segunda mão. Cumpriu um dos seus sonhos. Ofereceu uma casa à mãe.
O impacto de “Reckless” foi massivo em todo o mundo e em Portugal não foi diferente. Afinal de contas, mesmo antes dos Estados Unidos e Canadá “cederem”, já o seu culto tinha nascido. E o melhor relato do sucesso em Portugal é mesmo a genial crónica de Nuno Markl na rubrica “Caderneta de Cromos” da Rádio Comercial, de janeiro de 2011 - recomendamos a audição.
Mas a tónica é esta: “Hoje em dia há as pessoas que gostam de Bryan Adams e as que não gostam de Bryan Adams. É normal que assim seja. É claramente um artista que não agrada a todos os gostos, mas por muito que muita gente da minha geração tente esconder, houve uma altura nos idos de 1984, em que todos, todos, sem exceção, fomos fãs de Bryan Adams. E bastou só um disco para isso. Chamava-se ‘Reckless’, uma espécie de kit com toda a banda sonora que o jovem precisava na sua vida. E lá dentro havia de tudo, desde canções de euforia rock a baladas de amor. E, portanto, a opção económica em 84 estava em evitar a dúvida sobre que disco comprar, optando por comprar ‘Reckless’, que era o disco que tinha basicamente tudo. Tudo era tudo. Tudo que era preciso estava lá e tinha uma aura ‘Rock and Roll’ que hoje pode parecer estranha a quem ouve Bryan Adams, mais pop e mais meia-idade...”
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