
Com "The Testament of Ann Lee" ("O Testamento de Ann Lee", em tradução literal), um filme sobre a fundadora do movimento religioso Shaker do século XVIII, exibido no Festival de Veneza, a realizadora Mona Fastvold procurou homenagear uma figura "à beira de ser apagada da memória".
Lee, interpretada por Amanda Seyfried no filme que estreou em Veneza esta semana, foi "uma das primeiras feministas americanas a lutar pela igualdade" entre os sexos, mas também entre todos os seres humanos, disse Fastvold em entrevista à agência France-Presse (AFP).
Nascida em 1736 em Manchester, Inglaterra, numa família da classe trabalhadora, Lee — ou "Mãe Ann", como os seus seguidores lhe chamavam — criou o movimento Shaker, um ramo dos Quakers, cujo culto se baseava na dança e no canto para atingir um estado de transe.
Numa crítica, a publicação 'online' IndieWire considerou o terceiro filme de Fastvold "um biopic especulativo, febril e totalmente arrebatador", quase um musical com ênfase na música e na dança.
Os princípios dos Shakers, impostos por Lee — percebida como a reencarnação feminina de Cristo — envolviam a abstinência sexual, o pacifismo, a rejeição do orgulho e da riqueza e o trabalho manual como forma de oração.
Fastvold disse que se deparou com a heroína Shaker enquanto pesquisava os movimentos religiosos do final do século XVIII nos EUA, para onde Lee emigrou em 1774 com alguns discípulos para escapar à perseguição religiosa em Inglaterra e estabelecer uma comunidade Shaker perto de Nova Iorque.
Liberdade religiosa

"Era como a meca da liberdade religiosa nos EUA na altura. E as pessoas migravam para os EUA para experimentar todo o tipo de ideias diferentes e radicais sobre a religião", disse a cineasta norueguesa radicada em Nova Iorque.
O seu filme dá destaque aos hinos Shaker, revisitados pelo compositor Daniel Blumberg, que ganhou um Óscar este ano pela banda sonora de "O Brutalista", de Brady Corbet, parceiro de Fastvold.
Corbet coescreveu o argumento deste "The Testament of Ann Lee", tal como Fastvold o fez para "O Brutalista".
Fastvold disse que se sentiu atraída pela ideia de Lee de "criar uma comunidade onde se possa estar em segurança".
"Este sentido de comunidade a unir-se, a cantar, a dançar, a mexer-se, a absorver a dor uns dos outros e a ajudarmo-nos uns aos outros a superar essa dor... Comecei a ter uma compreensão real deste aspeto", disse Fastvold.
"Não fiz este filme para ser algo como 'Vem juntar-te aos Shakers'", disse.
"Mas acho que queria tratá-la com muito amor, porque se olharmos para a época em que viveu... o que fez foi bastante extraordinário, e as ideias que tinha sobre comunidade, empatia e bondade, e sobre liderar com bondade e amor."
Oração criativa

De acordo com a cineasta, restam apenas três membros do movimento Shaker, já que a comunidade se está a extinguir lentamente.
No seu auge, por volta de 1840, o movimento contava com seis mil seguidores de 19 comunidades, décadas após a morte de Lee, em 1784.
"Queria mostrá-la um pouco como um ícone. Como se faz nas pinturas religiosas e nos filmes sobre Joana d'Arc ou Jesus Cristo", explicou Fastvold.
"Todos estes ícones masculinos receberam este tratamento. Que tal eu pegar nisso e dar a esta mulher desconhecida?", perguntou.
Os Shakers são mais conhecidos hoje pelo seu mobiliário, valorizados no mundo do design pela sua funcionalidade e estética requintada.
"Para eles, a arquitetura, a criação de mobiliário, a criação de caixas, era uma forma de oração", esclarece.
"É por isso que as suas coisas são tão especiais. É por isso que as pessoas ainda são obcecadas por estes móveis e estes objetos... Há uma oração nisto, há uma oração obsessiva na criação deles."
Comentários