Após o sucesso da versão da Netflix dos criadores de "A Guerra dos Tronos", uma versão chinesa de "O Problema dos 3 Corpos" está a caminho do cinema, pela mão do lendário realizador Zhang Yimou.

A adaptação ao grande ecrã da joia da ficção científica chinesa foi anunciada no domingo no Festival Internacional de cinema de Xangai por Wang Changtian, fundador e presidente executivo da Enlight Media, um dos três principais estúdios de cinema da China.

“Esperamos que o realizador Zhang Yimou possa lidar com a essência do romance ‘O Problema dos Três Corpos’ e fazer alguns avanços e inovações, e ganhar algo no mercado internacional”, disse Wang, citado pela revista Variety.

Nas primeiras etapas de preparação do projeto, Yimou, de 74 anos, é o mais importante expoente da chamada Quinta Geração de Realizadores Chineses: o seu primeiro filme, "Milho Vermelho", de 1987, surpreendeu o mundo e ganhou o Urso de Ouro no Festival de Cinema de Berlim.

Ligado a clássicos como "Esposas e Concubinas" (1991), "Viver" (1994) e "A Tríade de Xangai" (1995), bem como a épicos das artes marciais como "Herói" (2002) ou "O Segredo dos Punhais Voadores" (2004), também trabalhou com Matt Damon em "A Grande Muralha" (2016).

Foi ainda o responsável pela cerimónia e encerramento de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim em 2008 e da abertura dos Jogos de Inverno de Pequim-2022.

Tal como a série da Neflix criada por David Benioff e D.B. Weiss, a produção adaptará os livros de Liu Cixin, uma superestrela da China que os leitores às vezes chamam de "Deus", e a sua trilogia "a bíblia da ficção científica chinesa". No início de junho, a série foi renovada para mais duas temporadas e contar a história toda.

Após um filme produzido em 2016 que nunca foi lançado, a nova adaptação ao cinema poderá ir de encontro a alguns segmentos dos fãs das obras na China que manifestaram a sua deceção com as escolhas criativas da versão da Netflix: o sucesso de audiências dos primeiros oito episódios lançados a 21 de março gerou debates intensos e dividiu opiniões no país, onde o facto de o serviço de streaming não estar oficialmente operacional não impediu que os mais devotos tivessem acesso, provavelmente através de serviços VPN ou 'sites' de streaming ilegais.

A história tem pano de fundo inicial a Revolução Cultural na China, um momento da história do país da década de 1960 abordado por Yimou direta ou indiretamente em vários dos seus filmes.

"A decisão fatídica de uma jovem na China da década de 60 repercute-se pelo tempo e o espaço até afetar um grupo de brilhantes cientistas no presente. À medida que as leis da natureza se desenredam diante dos seus olhos, cinco antigos colegas reúnem-se para confrontar a maior ameaça da história da humanidade", resumia o serviço de streaming.

Entre as dezenas de milhares de comentários deixados numa plataforma de críticas, as reações dos fãs à série variaram de deceção com as mudanças de enredo e personagens, à indignação nacionalista e ao otimismo de que o perfil da série aumentaria a representação da literatura e do cinema chineses.

"As obras originais têm uma influência enorme. Muitos fãs dos livros sabem de cor todos os detalhes das personagens dos livros, por isso têm dificuldade em aceitar mudanças", dizia à France-Presse (AFP) em abril Li Dongdong, fundador da comunidade chinesa de filmes de ficção científica Geek Movie.

Adaptações anteriores produzidas na China levaram em conta essa atenção obsessiva aos detalhes - Liu disse numa conferência que sugeriu fazer uma pequena mudança visual num enredo recorrente, apenas para ser informado: "Não o pode alterar para o tornar irreconhecível! "

Mas para muitos, a adaptação do Netflix fez isso.

Liderada pela equipa por trás da série de sucesso " A Guerra dos Tronos", transferiu a maior parte da ação para o Reino Unido e mudou as nacionalidades e géneros de algumas das personagens principais.

Um crítico chinês comparou a série a "um prato de frango do General Tso", um prato chinês ocidentalizado que pode ser usado como metáfora para a inautenticidade e a incompreensão cultural.

A série foi uma 'oportunidade falhada?'

O desacordo com as escolhas criativas dos criadores não se limitou à China.

A série foi a mais vista na Netflix na sua segunda semana, mas as críticas foram mistas, com a revista Rolling Stone a chamar-lhe "uma grande oportunidade falhada".

Algumas das críticas chinesas, porém, foram influenciadas pela política, num contexto de tensas relações entre os EUA e a China.

Muitos comentadores questionaram o motivo da decisão de manter o vilão chinês, enquanto os heróis são interpretados principalmente por ocidentais.

“Deixando de lado outras coisas, o elenco mostra mais uma vez que os americanos são ideólogos (políticos)”, dizia uma das críticas mais populares.

Outros questionaram a forma como a série retrata a história chinesa.

A produção começa na década de 1960, com uma cena horrível onde um físico é morto por uma multidão por se recusar a renegar teorias científicas importantes.

O seu uso como cena de abertura levou alguns nacionalistas 'online' a acusar a Netflix de fazer toda a série apenas para retratar a China sob uma luz negativa.

“É fazer uma bandeja inteira de bolinhos apenas para provar um pouco de vinagre”, escreveu um utilizador da rede social Weibo.

Porém, para os devotos de "O Problema dos 3 Corpos", a cena é fundamental para compreender as motivações do antagonista da série.

“Só o enredo da década de 1960 merece uma crítica de 5 estrelas”, disse outro comentador.

'Grande incentivo'

Outros fãs gostaram da história mais rápida e simples, que, segundo eles, torna a obra mais acessível e atraente para o público em geral.

“A adaptação da Netflix faz-me realmente entender pela primeira vez o encanto desta obra de ficção científica”, disse à AFP Harry Zhou, fã de ficção científica de Pequim, de 31 anos, admitindo que tentou e não conseguiu terminar os livros originais várias vezes.

A popularidade da série também trouxe atenção global para o trabalho de Liu e para a ficção científica chinesa em geral.

“Tenho certeza de que mais pessoas irão reler a história original depois de ver isto”, partilhou o famoso criador de jogos japonês Hideo Kojima na rede social X (antigo Twitter).

"As pessoas de outros países podem agora ver que os escritores chineses são capazes de escrever grandes obras de ficção científica. Isto aumentará a presença da ficção científica chinesa", disse Zhou.

O envolvimento da Netflix foi visto como um voto de confiança no género.

"A ficção científica chinesa está a ser reconhecida com investimento em dinheiro real... é um grande incentivo para a comunidade chinesa de criadores de ficção científica", disse Li, da Geek Movie.

“É um pequeno passo para (Liu Cixin), mas é um grande passo para a criação de ficção científica chinesa”, concluiu.

VEJA TRAILER DA SÉRIE.