Rosto mais visível de um filme que marca o cinema nacional (e não só) de 2024, Gonçalo Waddington volta a colaborar com Miguel Gomes depois de ter participado em dois volumes do tríptico "As Mil e uma Noites", há quase dez anos.

Na pele de Edward, um funcionário público britânico de inícios do século passado, o ator conduz os espectadores durante boa parte da obra que chega às salas nacionais esta quinta-feira, 19 de setembro, já com um aclamado percurso fora de portas. Afinal, foi o filme que valeu a Miguel Gomes o prémio de melhor realização no Festival de Cannes, em França, em maio, um momento histórico para o cinema português.

Mais recentemente, destacou-se como título escolhido pela Academia Portuguesa de Cinema para concorrer à nomeação de Melhor Filme Internacional nos Óscares, além de ter aberto o Festival de Cinema de Marselha, em junho, e de estar selecionado para o Festival de Nova Iorque, este mês.

Gonçalo Waddington
Gonçalo Waddington Gonçalo Waddington como Edward em "Grand Tour"

Embora Gonçalo Waddington não seja uma presença nova no universo idiossincrático (e por vezes inclassificável) do cineasta, é pela primeira vez o protagonista, iniciando uma viagem pela Ásia a partir da Birmânia e com passagem pelo Vietname, Tailândia, Filipina, Singapura, Japão e China ao fugir da noiva, Molly (Crista Alfaiate).

Na Cinemateca Portuguesa, em Lisboa, espaço que acolhe a antestreia de "Grand Tour" esta quarta-feira, dia 18, às 21h30, o ator (que também mantém um trajeto como realizador, argumentista, dramaturgo e encenador) contou ao SAPO Mag como se aventurou nestes territórios:

SAPO Mag - "Grand Tour" foi escolhido como o filme português candidato a uma nomeação ao Óscar de Melhor Filme Internacional. Isto depois de uma temporada onde já foi muito celebrado, sobretudo em Cannes, com o prémio de realização. Uma vez que já tinhas colaborado com o Miguel, como é que olhas para ele enquanto realizador, tanto a nível estético, formal, como enquanto colaborador?
Gonçalo Waddington - Começa por ser difícil não pensar no Miguel como um amigo, até porque eu, a Crista e o Miguel vivemos todos perto uns dos outros, em Alvalade. Portanto há uma coisa já de amizade há algum tempo. Obviamente, essa amizade aconteceu em termos profissionais. O Miguel é, de facto, diferente de tudo o que eu tenho apanhado, e bem, porque tenho apanhado coisas muito diferentes. O trabalho com ele é sempre uma surpresa. Apesar de os guiões serem objetos por si só muito bonitos, muitas vezes vamos filmar e o resultado é diferente do que estava escrito e diferente do que foi ensaiado. Ele está sempre alerta para as surpresas que lhe aparecem na cabeça ou para as surpresas que nós possamos ter. E essa zona de criação envolve alguma diversão, mas muita seriedade. obviamente, porque é preciso estarmos concentrados, é preciso estarmos disponíveis. É uma relação muito especial, porque olhando para os filmes dele, havendo filmes que diferem bastante uns dos outros, sente-se ali uma linha. Eu, pelo menos. quando vejo os filmes dele, sinto que há ali muita imaginação, há muita disponibilidade para o erro que depois se torna uma coisa ainda melhor do que o que estava pensado ou planeado.

Grand Tour
Grand Tour Crista Alfaiate, Miguel Gomes e Goncalo Waddington no Festival de Cannes créditos: Lusa

Falas dessa diferença entre a escrita e o processo de realização e concretização do filme. Neste caso, foi ainda mais específico porque a rodagem teve lugar em Roma, certo?
Primeiro aqui, depois em Roma. Nós tivemos duas, três semanas aqui, e umas quatro em Roma.

E para além disso, o Miguel filmou à parte na Ásia...
Sim, a diferença foi que antes disso, um bom tempo antes disso, não sei se foi ano e meio, foi filmada a parte de documental do filme, em que ele fez, de facto, o "Grand Tour", que começava em Myanmar e acabavam algures na China. Ele filmou os diversos sítios por onde as personagens passavam, e depois nós, em cenários construídos, cenografados em estúdio, estávamos nesses mesmos sítios.

Como é que foi esse processo de tentares imaginar-te nesses locais pelos quais só passou o Miguel?
Nós estivemos os trancados no estúdio. [risos] Mas teve qualquer coisa de mágico. Ele já tinha filmado em estúdio, mas nunca com aquela envergadura. Ele falou-me, a dada altura, nos anos 40 Hollywoodescos, e de facto sentia-se um bocado daquilo... Filmámos num porto, ou seja, com um barco, filmámos numa floresta com um comboio descarrilado, num palácio na Tailândia... E como ele arranjou atores nativos de cada país em que nós estávamos, tudo isso foi mágico.

Grand Tour
Grand Tour Grand Tour

Países por onde passa a tua personagem, Edward. Como te ambientaste naquele contexto histórico? Já tinhas interpretado outras personagens do Miguel, mas muito diferentes...
A uma dada altura, ele falou em duas páginas do "Um Gentleman na Ásia", do Somerset Maugham, só pela questão de uma referência ao "Grand Tour" e a um homem que conta uma história num barco. O resto, aquilo é tudo fruto da imaginação dele. E o que eu acho muito bonito também é o Edward e a Molly falarem em português, que também é uma coisa bastante inesperada e mágica, de alguma forma. Então, foi mais o trabalho de descobrir com o Miguel, nos ensaios, o tom, o que foi bastante rápido... e, de resto, não houve grande dificuldade. Eu tenho de saber, minimamente, o que significa ser um inglês algures no Oriente nos anos 1910 ou os anos 1920. Convém ter lido qualquer coisa...

Essa parte fizeste individualmente ou discutiste com o Miguel a questão dos diálogos, da maneira de falar, da entoação...
Eu já tinha visto e lido sobre aquilo. Há trabalho de casa que tu tens de fazer, tens de te informar, tens de ver filmes, tens de ler livros. Mas há uma coisa que é importante: nós sabermos que temos de estar disponíveis. E às vezes a disponibilidade não é só uma disponibilidade de agenda. Quando estamos a filmar ou a ensaiar, mas particularmente a filmar, temos de estar disponíveis. Temos de perceber como é que está o Miguel, como é que está a equipa, como é que eu estou, tenho de estar calmo, bem dormido... Eu não levo as coisas muito preparadas. Quer dizer, sei o texto, isso está fora de questão, não há coisas de improviso... a não ser, obviamente, que eu seja contratado especificamente para isso. De resto, não gosto de trazer coisas muito preparadas de casa. E conheço atores que o fazem e eu não gosto de todo, nem de os ver trabalhar assim, nem de trabalhar com eles, muito menos eu trabalharia assim... Claro que há um trabalho prévio feito com o realizador, neste caso houve ensaios e tudo. Mas se o Miguel me disser: "Epá, isso não está bom, agora vamos fazer mais não sei o quê... e se ele agora gritasse, se ele agora não sei o quê". E esse é que é o grande trabalho. A grande ferramenta do ator, para mim, é a disponibilidade.

Grand Tour
Grand Tour A equipa de "Grand Tour" no Festival de Cannes

E neste caso, houve essa disponibilidade para descansares, para te concentrares, para te focares na personagem, naquele universo...
Total, até porque não é todos os dias que aparece filme com esta envergadura, com uma envergadura que seja não só financeira, mas artística.

E um papel protagonista também.
Exato, é incrível. Nesse aspeto é incrível.. De facto, é único e será sempre único.

Entretanto também estiveste a gravar esta manhã...
Estive a fazer uma série para a Amazon com a TVI. E estou, a par disto, a preparar o meu filme, que hei de filmar em janeiro, fevereiro, e já estou com repérage, a escolher sítios, casting de atores, antes tive de fazer uma nova versão do guião, algumas correções. Portanto, estou numa fase de quase pré-produção à séria.

Será a tua segunda longa-metragem.
A minha segunda longa-metragem, exato.

E o que podes adiantar sobre ela? Na primeira, "Patrick" [2019], abordaste o drama com contornos de thriller...
Exato, chama-se o "Dragão Entre o Céu e a Terra" e vai ser passado em duas épocas diferentes, no mesmo espaço, e basicamente é um confronto de épocas. Vamos de ver nestas épocas, nestas personagens, a forma como lidam com crianças, com a velhice, com mulheres, com animais, com natureza e muitas outras coisas que eu não gostaria agora de dizer. [risos] Ainda está muito embrionário, embora o guião esteja mais do que pronto, mas acho que é claramente confronto de épocas e de mentalidades e que nos obriga, de alguma forma, a refletir um bocadinho também sobre as nossas crenças, os nossos ideais, as nossas maneiras de ver o mundo.

E realizas, interpretas, escreves...?
Realizo, interpreto e escrevo. [risos]

Escreves sozinho?
Escrever sozinho, não. E tenho outros intervenientes atores. Não vai ser um monólogo. [risos]

TRAILER DE "GRAND TOUR":