“O meu nome é Miguel Carneiro, sou a quinta geração, e a Moreira da Costa chega aos 70 anos através de muito carinho e amor pelos livros”, começa por dizer à Lusa o homem, de 47 anos, que encabeça atualmente a gestão da livraria centenária depois de esta ter começado em 1902 pelo trisavô.
Por detrás de uma primeira sala mais apertada, aberta ao público, por debaixo de um outro piso superior de acessos estreitos, está uma cave com dezenas de milhares de livros, na sua maioria ainda por catalogar, e foi aí que Miguel começou por trabalhar, “com 13 anos, a limpar livros”.
Aos 18, assumiu o trabalho na casa “a 100%”. “Costumo até dizer que o meu primeiro casamento foi com a livraria”, reflete o alfarrabista, desde 1998 à frente dos destinos do estabelecimento.
Inicialmente instalada na antiga travessa da Fábrica, José Moreira da Costa abriu a livraria em 1902 depois de trabalhar como caixeiro para Ernesto Chardron e Lungan & Genelioux.
Depois de morrer o fundador, Elisa Duarte da Costa Ferreira Dias, filha do proprietário, assumiu a gerência e acrescentou “(Filha)” ao letreiro da casa, que já reunia várias figuras da cidade e amantes da literatura em várias tertúlias, em particular sobre a obra de Camilo Castelo Branco.
Uma das pessoas que por lá passavam tinha em sua posse um dos cinco exemplares conhecidos de “A Infanta Capelista”, sendo que Elisa decidiu criar uma edição fac-similada da obra.
Não tendo contactado a família do autor, “o caso acabou em tribunal, e em 1958 a sentença foi de seis meses de prisão efetiva, mas acabou por pagar a multa diária”, conta Miguel Carneiro, que pensa que este terá sido “um dos primeiros casos portugueses de direitos de autor”.
Mais tarde, em 1965, a filha Maria Elisa Gonçalves assumiu a terceira geração à frente do estabelecimento, sendo que em 1987 foi criada uma sociedade com vários elementos da família.
Miguel Carneiro, trineto de Moreira da Costa, compra a quota do tio em 1998 e assume a gestão da casa, que partilha com a mulher, Susana Fernandes.
A festa de aniversário, de entrada livre, arranca, hoje, pelas 14:30, com leituras de poesia e prosa sobre o Porto por Nuno Meireles, seguido de uma encenação de Paulo Brás de “Conto de Inverno”, pelas 18:30.
A leitura encenada tem sonoplastia “criada e tocada ao vivo” por Gabriel Innocentini, e antecede a “abertura do bolo” que assinala o aniversário quer do espaço, que ‘sopra’ 70 velas, quer da livraria, chegada aos 116 anos.
Inaugurada na quinta-feira, a exposição “Momentos Moreira da Costa” coloca na montra fotografias de vários amigos e fotógrafos, retratando os últimos anos do espaço, com eventos como a gravação de um vídeo para a banda Les Saint Armand, a passagem de programas televisivos ou apresentações de livros.
À Lusa, Susana Fernandes, de 45 anos, explica que tem “representado” a sexta geração, no caso o filho, André, e que até “gosta muito de livros, mas nunca se sabe o que o futuro reserva.
Os 70 anos “são muito importantes”, não só pela raridade do feito como pela celebração de um orgulho que têm em receberem “diariamente” o carinho e reconhecimento da cidade, algo patente, também, na classificação como Loja Histórica por parte da Câmara do Porto.
O programa, destinado a proteger estabelecimentos tradicionais da cidade, gerou uma proteção para o mais antigo alfarrabista portuense, uma vez que os senhorios, o grupo The Fladgate Partnership, que é proprietário do Hotel Infante de Sagres, pretendia incluir o espaço nas obras de remodelação.
Em abril, aquando da abertura do novo espaço, o presidente executivo, Adrian Bridge, revelou que tinham sido movidos processos contra a livraria e contra a autarquia com vista à construção de um ‘spa’ na cave, paredes-meias com a livraria.
À Lusa, Susana Fernandes explica que os processos estão a decorrer, mas a Moreira da Costa diz confiar “nos tribunais e que vai ser feita justiça”. “As pessoas vêm cá dizer-nos, de forma diária, que não entendem como é que o hotel não tem orgulho em ter a livraria mais antiga da cidade no seu empreendimento”, acrescentou.
Na rua de Avis, a livraria “é acarinhada por todas as pessoas que entram”, porque “se sentem em casa” e há “um atendimento próprio”, considerou Miguel Carneiro, que sabe a exigência “do cliente de alfarrabista”.
Os artigos mais procurados por ali são “primeiras edições de autores portugueses, Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco”, mas também há lugar para pedidos insólitos, como a pergunta sobre “se os livros da Coleção Vampiro podem ser passados para a vida real, para cometer um assassinato”.
Já o “papel histórico” da casa está preservado na “muita documentação publicada”, tendo em conta um percurso que atravessa monarquia, república e ditadura até chegar a 2018, em que “o livro físico tem um espaço muito próprio e está a recuperar”.
Ter “uma das livrarias mais antigas da cidade, e mantê-la com vendas razoáveis, se não boas, e com um público de volta à livraria”, é “o maior orgulho” para Miguel Carneiro, que gostava que o filho lhe desse continuidade mas sem ser imposto, uma vez que “só gostando é que se trabalha oito horas com carinho e amor”.
“Somos a livraria mais antiga da cidade, e as pessoas já a têm como deles e não como nossa, é da cidade. No sábado, no fundo, queremos chamar os amigos e o Porto à livraria, para festejar com eles”, atira Susana.
Apesar das “muitas crises”, das obras no bairro à conjuntura do país nos últimos anos, o casal está pronto a ficar “mais 40 anos” à frente dos destinos da Moreira da Costa, até porque “as pessoas estão a voltar às livrarias” e à procura do objeto físico.
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