O primeiro andar da centenária Casa dos Bicos, em Lisboa, alberga o enorme espólio literário de José Saramago, todos os livros que publicou, em várias edições – incluindo o seu primeiro romance, “Terra do Pecado”, publicado em 1947 pela Minerva -, manuscritos e datiloscritos dessas obras, os livros que consultou para escrever “Memorial do Convento” e a bibliografia a que recorreu para construir o polémico “O evangelho segundo Jesus Cristo”.
Tudo isto se encontra na exposição permanente da Fundação, “José Saramago. As Sementes e os frutos”, que é, na verdade, "uma transposição, em versão mais reduzida, para aquele espaço de uma outra mostra, de 2008, chamada 'José Saramago. A consistência dos sonhos'”, que passou por Lisboa, Lanzarote, São Paulo e Cidade do México, contou à Lusa Sérgio Letria, diretor da Fundação José Saramago (FJS).
“Quando a fundação veio para a Casa dos Bicos, achámos que, obviamente, teríamos de ter uma exposição permanente e, portanto, esta exposição resulta dessa grande exposição: temos aqui grande parte do espólio literário de José Saramago, temos originais, traduções, fotografias e está organizada por livro ou por tema”, disse à Lusa Sérgio Letria.
Percorrendo a galeria onde está exposto o acervo saramaguiano, percebe-se a separação entre secções, os livros que escreveu, os traduzidos e publicados noutros países, e as obras de outros autores que Saramago traduziu.
Depois, há alas dedicadas à atribuição do Prémio Nobel a José Saramago (em 1998), com a devida medalha, à sua intervenção cívica e política, ao diploma ‘Honoris Causa’ que recebeu, e à sua filmografia, no caso, o documentário de João Mário Grilo, que dá a conhecer a personalidade do escritor, e o filme “José e Pilar”, da autoria de Miguel Gonçalves Mendes, um relato sobre a sua vida ao lado de Pilar del Río, atual presidente da fundação.
Mas aquele que poderá ser o aspeto mais surpreendente desta exposição é a personalidade de José Saramago e, em parte, a sua intimidade, revelada em agendas, nas quais anotava criteriosamente – com uma letra de imprensa pequena e absolutamente simétrica - tudo o que fazia, e caderninhos de anotações de capa preta, manuscritos em letra corrida, com ideias para os seus livros.
São elementos “mais privados, mais pessoais”, dos quais ressalta a sua “capacidade de trabalho e a sua capacidade organizativa”, afirma Sérgio Letria.
“Havia uma metodologia na forma como José Saramago trabalhava que fica bem patente nas agendas, na forma como ele anotava as coisas todas, os filmes que via, as peças de teatro a que assistia, as reuniões políticas e partidárias que tinha, as viagens que fazia, até, às vezes, valores que recebia por trabalhos que fazia, fossem revisões, traduções ou até de direitos de autor em alguns casos”, descreve à Lusa o diretor da FJS.
O primeiro encontro marcado com aquela que viria a ser a mulher que o acompanharia até ao resto da vida, está anotado numa das agendas, com o nome “Pilar de Los Rios”, engano no apelido, posteriormente riscado com um traço, e corrigido, em cima, para “Pilar del Río”.
Por outro lado, os cadernos de capa preta “são o coração literário de José Saramago”, diz Sérgio Letria, acrescentando: “Nós temos o trabalho final, que é o que nos chega enquanto leitores, mas nesses cadernos de capa preta temos os bastidores desse trabalho, como é que o autor pensava”.
Por isso, fala de um possível “projeto de futuro” da fundação, de publicar os escritos pessoais de Saramago, uma ideia ainda indefinida, em função da impossibilidade de consultar o autor sobre “se aceitaria e o que acharia de possibilidade de os leitores um dia poderem ter acesso a esse material”.
“De facto, colocando-me na pele do leitor, eu gostaria de saber como é que o ‘Memorial do Convento’ foi construído, como é que ‘O ano da morte de Ricardo Reis’ chegou a ser ‘O ano da morte de Ricardo Reis’, que ideias é que estavam na cabeça do autor. Pode ser um projeto de futuro, mas teria de ser muito bem pensado”.
É que a fundação segue a regra de “nunca falar pelo Saramago”, são as ideias que ele deixou as que estão lá, explica Sérgio Letria à Lusa, contando que a FJS foi criada por vontade do próprio, de Pilar e de alguns amigos, para que existisse “uma entidade que trabalhasse com as palavras e as ideias do José Saramago”.
Criada em junho de 2007, a fundação obteve oficialmente o espaço da Casa dos Bicos, por cedência da Câmara Municipal de Lisboa, em 2008, através de um contrato de dez anos, que se renovou automaticamente este ano, por mais dez.
Além da obra de Saramago, o trabalho da FJS gira em torno de “uma declaração de princípios que o próprio deixou escrita, onde estão enumeradas as áreas em que a fundação deverá trabalhar: defesa da cultura em Portugal e no mundo, defesa dos direitos humanos, tomando como documento orientador a declaração universal de direitos humanos, que este ano cumpre 70 anos de vida, e também a defesa do meio ambiente”.
A FJS é ainda composta por uma livraria, um auditório, com uma programação regular que passa por apresentações de livros, conferências, debates, exibições de filmes ou concertos, e uma revista digital, intitulada “Blimunda”, herdando o nome da personagem do “Memorial do Convento”.
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