
A companhia A Barraca estreia na quinta-feira, em Lisboa, uma nova produção de “O príncipe de Spandau”, numa altura em que aumenta a “onda de apoio à política de ódio e violência”, que os democratas “imaginaram extinta”.
A atriz Maria do Céu Guerra, em declarações à agência Lusa, explicou que A Barraca “decidiu repor esta peça há meses, porque a onda de apoio que está a ser implementada no mundo a favor desta politica de ódio e violência, que ingenua e preguiçosamente os democratas (e não é a primeira vez) imaginaram extinta e deixaram que avançasse, exige dos artistas e dos autores que foram capazes de entregar a sua tranquilidade pela paz e pela liberdade de todos, o façam mais uma vez."
Escrita em 1987 e começada a trabalhar ainda antes da agressão ao ator Adérito Lopes, em 10 de junho último, por um elemento de um grupo de simpatizantes neonazis, conforme disse à Lusa a atriz e cofundadora de A Barraca, “O príncipe de Spandau” centra-se em Rudolph Hess (1894-1987), o homem de confiança de Hitler no Partido Nazi, desde a sua condenação no Tribunal de Nuremberga até à sua morte na prisão de Spandau.
Rudolph Hess foi nomeado vice-Führer por Adolf Hitler, a par de Herman Goering, em 1933, mantendo-se no cargo até 1941.
Autor de grande parte de legislação, incluindo as leis de segregação de Nuremberga, de 1935, que retiraram os direitos aos judeus na Alemanha e estiveram na base do Holocausto, Hess foi preso, em 1941, pelas autoridades britânicas depois de ter voado para a Escócia num esforço para tentar negociar a paz com o Reino Unido.
Mantido sob custódia dos britânicos até ao fim da II Guerra Mundial, foi depois julgado, em Nuremberga, e condenado a prisão perpétua por crimes contra a paz e conspiração com outros líderes alemães para cometer crimes. Morreu em 18 de agosto de 1987.
Quando Helder Costa, cofundador da companhia com sede no Cinearte, escreveu a peça, em 1987, e o ator João d'Ávila mais tarde a interpretou “não pendia sobre o mundo visivelmente uma ameaça nazi”, notou Maria do Céu Guerra à Lusa.
“Era apenas uma grande história da História da Europa com que todos tínhamos a aprender muita coisa. E que tinha, por essa razão, desafiado o autor Helder Costa”, referiu Maria do Céu Guerra, acrescentando que, atualmente, “em que as circunstâncias avançam perigosamente para o Nuclear e para um tipo de Inteligência cujos perigos nem sabemos medir é indispensável que aprofundemos os caminhos do Mal”.
"A História já nos mostrou quais são [esses caminhos], e o nazismo é um deles”, acrescentou cofundadora de A Barraca, sublinhando que “o ovo da serpente repete os mecanismos do mal em gestação e os autores sabem escrevê-los”.
Por isso mesmo, “Gil Filipe, que interpreta, Helder Costa e A Barraca em peso, ao pôr em cena agora 'O príncipe de Spandau', ao fazerem de novo este mergulho no horror que é a cabeça de um nazi, estão a querer mostrar-nos alguma coisa que pode estar mais perto do que imaginamos”, frisou Maria do Céu Guerra.
Argumentou ainda que “todos os dias muita gente está a fazer dezoito anos e as histórias não estão todas contadas”, daí que o espetáculo original produzido em 1987 fosse “menos realista” do que aquele que agora estreiam. Na altura, "estava mais longe de acontecer”, argumentou.
Embora “O príncipe de Spandau” seja “uma ficção premonitória” sobre a vida de Rudolph Hess, desde que foi condenado no Tribunal de Nuremberga até à morte, o texto revelou-se “premonitório contra as tendências racistas, os ódios contra imigrantes e refugiados, o despotismo e extremismos políticos hoje, infelizmente, mais vivos do que nunca”, refere A Barraca sobre a peça.
“'O príncipe de Spandau' não é uma personagem de ficção”.
“É um amigo, um secretário, terceira figura do estado nazi, que colaborou com Hitler na escrita de 'Mein Kampf' quando ambos estavam presos durante a Republica de Weimar; que colaborou na legislação e pensou e decidiu o Holocausto”, acrescentou Maria do Céu Guerra à Lusa.
A peça é sobre aquele que foi “um dos mais influentes dirigentes do III Reich”, e procura apresentá-lo “na sua mais crua verdade”.
“A única informação que não temos, nem nós nem a história como confirmada, é se ele se suicidou ou se foi 'suicidado' como costuma acontecer nestes regimes”, disse Maria do Céu Guerra, insistindo que “é justamente disso tudo" que falam quando se referem ao "ovo da serpente`”.
A reposição da nova produção da peça é, pois, uma “escolha coletiva”.
“A Barraca como grupo - e muita especialmente o dramaturgo Helder Costa - só se dispõe a pôr mãos a um tema quando ele está presente no seu tempo e acha que tem para dar sobre esse tema um contributo clarificador. São assim os escritores e artistas comprometidos, ou seja, engajados. Foi isso que A Barraca sempre quis ser”, concluiu Maria do Céu Guerra.
Com texto de Hélder Mateus da Costa e interpretação de Gil Filipe, a peça terá duas sessões de estreia, na quinta e sexta-feira, pelas 19h30.
No espetáculo, o número dois de Hitler imagina-se no Quartel-General de Spandau em representação de Hitler.
“Na sua loucura dirige a política mundial, envia telegramas para ditadores, chefes militares e polícias de todo o mundo", lê-se na sinopse da peça, apresentada pelo autor. Rudolph Hesse imagina-se "um príncipe encantado com visões apocalípticas sobre o regresso do Führer e a sua vitória definitiva”.
“Quando o fim se aproxima, encara a morte como o prenúncio de uma Nova Era em que o nazismo renascerá das cinzas”, acrescenta o dramaturgo, sublinhando: “Só quero que esta História - mesmo em farsa - não se repita.”
A peça foi exatamente escrita em 1987, após a morte de Hesse, como "alerta para o regresso possível dessa peste negra". Foi estreada em Viena de Áustria, em 1989, seguindo depois para palcos da Dinamarca, Bolívia, Roménia, assim como de Londres, Paris, Bruxelas e Madrid, antes da estreia em Lisboa.
"O príncipe de Spandau" ficará em cena até 27 de julho, pelo menos, com récitas à quinta e sexta-feira, às 19h30, ao sábado, às 21h00, e, ao domingo, às 17h00, devendo regressar ao palco, em setembro, segundo A Barraca.
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