Com vários concertos em simultâneo em nove espaços, torna-se por vezes difícil optar. Apostar num artista pode implicar perder um grande concerto de outro, mas quem passou a noite desta sexta-feira na Avenida da Liberdade, em plena maratona de espectáculos, já deveria saber ao que ia. E assim os que assistiram, por exemplo, à actuação de Zola Jesus na Sala 1 do Cinema São Jorge, não ficaram com o frenético concerto de Kele no Tivoli gravado na memória.
A festa de Kele
O vocalista dos Bloc Party, na sua estreia a solo por cá, mostrou que se aguenta muito bem sem a banda com que se fez notar. "The Boxer", o seu primeiro disco em nome próprio, editado este ano, está longe de fazer sombra a "Silent Alarm" e sucessores, mas em palco a história foi outra. Num concerto com doses de hedonismo que dificilmente estariam presentes nos espectáculos do seu grupo, o britânico nem sequer precisou de pedir que o público se levantasse das cadeiras. A música tratou disso desde os primeiros segundos e manteve o cenário durante cerca de uma hora.
O arranque, tal como no álbum, fez-se com "Walk Tall" e "On the Lam", argumentos fortes para uma actuação onde dançar foi a palavra de ordem. "Vá lá, Lisboa, é sexta-feira à noite", insistiu Kele, que não se cansou de pedir mais a uma sala onde a euforia foi sempre considerável. Mas num alinhamento que viveu muito de heranças do electro maximal, big beat ou até synth pop, "The Boxer" nem sempre esteve em destaque. Não demorou muito para que canções mais antigas fossem recuperadas, e ninguém se queixou. "Agora vou tocar uma da minha banda. Não sei se sabem, mas tenho uma banda, e chama-se ... Black Eyed Peas. Não, vocês sabem como se chama", brincou, acabando por surpreender com um medley dos Bloc Party que incluiu uma versão cristalina e pulsante de "Blue Light", uma bem mais musculada de "The Prayer" ou uma "One More Chance" capaz de pegar fogo a qualquer pista de dança.
Também da sua banda (e, felizmente, não dos Black Eyed Peas), ouviu-se ainda "Flux", single irresistível e um dos que abriu espaço para o rumo mais electrónico do cantor a solo. Outro single, este sim de "The Boxer", "Tenderoni" foi um dos picos da noite já que Kele o interpretou fora do palco, no fundo da sala, em cima da mesa de som. Menos dada a devaneios, "Unholy Thoughts" destacou-se como um dos raros temas onde as guitarras ganharam protagonismo, perdendo-o na montanha-russa rítmica e emocional de "Rise" ou na discreta beleza atmosférica de "All Things Things I Could Never Say", onde a melancolia ganhou à festa.
A fechar um concerto onde houve ainda uma música dedicada ao segurança Carlos ("Não me queria deixar entrar na sala", confidenciou Kele) e ficou bem expressa a vontade (e probabilidade) de um regresso a Portugal, o encore contou com um momento anos 80, na versão de "Goodbye Horses" dos Q Lazzarus, e com o regresso ao novo milénio em "This Modern Love", aplaudidíssima escolha para um final em grande (e com incontáveis braços no ar por toda a sala). Agora sim, poucos duvidarão que há vida para além dos Bloc Party.
As versões de Tiago de Bettencourt e Hollywood, Mon Amour
Se na recta final da noite Kele deixou um espectáculo que não se esquece tão cedo, até aí o entusiasmo mostrou-se mais moderado. "Chaga", dos Ornatos Violeta, iniciou o concerto de Tiago Bettencourt (o primeiro do festival) no Espaço BES Arte e Finança, no Marquês de Pombal. A voz e o piano do ex-vocalista dos Toranja - e, nas canções seguintes, partipações de outros músicos - acolheram muitos espectadores que aí regressaram para ver e ouvir os Hollywood, Mon Amour. O projecto do francês Marc Collin dedica-se, tal como os Nouvelle Vague (a sua outra banda), a versões, mas em vez de optar por clássicos dos anos 80 resgata temas emblemáticos do cinema norte-americano. E, pelo que se ouviu ontem, sai a perder, resultando ainda mais pasteurizado e inofensivo. A distância entre os Hollywood, Mon Amour ou qualquer banda de versões de bares não pareceu muita, e talvez por isso boa parte do público tenha aproveitado o espaço para descansar, beber uns copos e colocar a conversa em dia.
Jorge Palma de volta ao metro
Alguns metros mais abaixo, na Estação do Marquês de Pombal, a situação inverteu-se: o problema não foi a falta de carisma do cantor mas as limitações da "sala". Ao fundo de um corredor apinhado, Jorge Palma conquistou sorrisos com os uivos que antecederam "Lobo Malvado" e deixou umas quantas dezenas a cantar consigo "O Bairro do Amor". O artista é um bom artista e o conceito, que recordou as suas actuações no metro de Paris, tinha graça - pena a intrusivacorrente de ar ou os pingos de água que se meteram com as testas mais desprevenidas, suficientes para alterar o estado de alguns sorrisos.
Muito B Fachada, um bocadinho de Sérgio Godinho e o violino de Pallett
Outro concerto de artistas nacionais, e também com casa cheia, a colaboração entre B Fachada e Sérgio Godinho foi mesmo um dos espectáculos mais concorridos da noite (deixando muitos fãs à porta). Infelizmente, o autor de "Há Festa na Moradia" teve muito mais tempo de antena do que o cantautor veterano, que só entrou em palco mais para o final. Ainda assim não faltaram aplausos, à semelhança da recepção calorosa a Owen Pallett, à mesma hora no Tivoli. Tal como a de B Fachada, a voz e entoação do canadiano também são um gosto adquirido, mas ao vivo resultam melhor do que em disco. A teatralidade das suas canções vale, contudo, muito mais pelo violino do qual raramente prescinde, seja quando de facto o toca ou quando o usa para minuciosas camadas de loops (aliadas a teclados ou programações). Com tanto de barroco como de introspectivo, o concerto deixou uma sala rendida a um músico que não teve medo de enfrentar - e conquistar - o palco sozinho. Presença regular por cá, muito por culpa do seu projecto Final Fantasy, Pallett dificilmente terá tido aqui o seu último regresso.
Wavves, um final com um regresso à adolescência
Sem a mesma delicadeza, embora com uma eficácia estimável, os Wavves actuaram horas mais tarde no Parque de Estacionamento do Marquês de Pombal, onde fecharam esta primeira noite de concertos. E em acelerados 40 minutos, se tanto, despacharam parte do novíssimo "King of the Beach", o seu terceiro disco. A combinação clássica de guitarra, bateria e baixo foi suficiente para o trio norte-americano destilar doses generosas de energia cinética, sobretudo para quem quis meter-se num mosh antes de ir dormir. Mas o concerto esteve longe de ser ruído em estado bruto: entre a distorção e a teen angst (que, felizmente, não se leva muito a sério) há um punhado de boas melodias, devedoras dos ensinamentos grunge dos Nirvana e com alguns ecos do surf rock dos Beach Boys. A actuação trouxe uma bem-vinda adrenalina adicional à noite após o concerto de Kele, mesmo não tendo sido tão demolidora como poderia: além da breve duração, o espaço, de acústica questionável e temperatura de sauna, esteve longe de ser o mais apropriado.
Ao longo da noite, nestes e noutros espaços (Cabaret Maxime, Restaurante Terraço do Hotel Tivoli, Vodafone Bus) o primeiro dia da terceira edição do Super Bock em Stock contou com Lars and the Hands of Light, The Shoes, Pinto Ferreira, The Hundred in the Hands, Spokes, Adriana e Kumpania Algazarra. Apenas Adam Kesher acabou por não comparecer, devido à greve dos controladores aéreos em Espanha.
Neste sábado, o segundo e último dia do festival, é a vez de Janelle Monáe, Linda Martini, I Blame Coco ou Fujiya & Miyagi levarem música à Avenida da Liberdade. Veja o cartaz e horários.
Texto @Gonçalo Sá/ Fotos @Vera Moutinho
Videoclips dos artistas do festival:
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