Palco Principal - Em 1999, ganhou o prémio Voz Revelação da Blitz, com um álbum de Fado. O que mudou de lá para cá?
Mafalda Arnauth – A maior mudança prende-se com a dimensão que o Fado e a música tomaram na minha vida. O que começou por ser algo espontâneo e quase acidental, a par com os estudos de veterinária, transformou-se, em pouco tempo, no centro da minha vida, na minha profissão e, sobretudo, na minha forma de me relacionar com o mundo. Se pensar que não aspirava, de todo, a ser artista e muito menos dedicar, de forma profissional, tanto de mim a uma carreira, diria que mudou quase tudo. Não mudou a minha entrega às emoções e à vontade de comunicar, algo que sempre tive e que se mantém.
PP – A maior parte dos temas do disco, com exceção de “Fado” e “Partiu de Madrugada”, são da sua autoria. A intenção era haver uma continuidade entre eles, uma ligação?
MA – Os temas foram surgindo espontaneamente, um pouco sem filtros ou restrições. Provavelmente, correspondem a um momento atual, o que lhes confere um estado de espírito comum, algo que é mais evidente quando é o mesmo autor que os compõe. Estão todos ligados de alguma forma e, sobretudo, procuram transmitir um estado de alma particular.
PP – Estes temas acabam por ser autobiográficos. A Mafalda só escreve sobre coisas que estejam relacionados consigo?
MA – Não tenho jeito para escrever ficção nem histórias, o que me leva muitas vezes a ‘contar’ as minhas próprias vivências, sem detalhes, sem nomes ou lugares, mas as emoções vivenciadas por mim. O facto de ser também sensível aos outros e em permanente observação faz com que acabe por escrever não só o que me toca, mas o que é transversal a muita gente, também. Neste álbum trago muito da minha vivência, mas também da que o mundo à minha volta me transmite.
PP - A Mafalda neste disco diz que “a terra de cada um é um lugar muito pessoal”. A sua terra é uma terra de luz?
MA – Dou por mim atrás da luz, seja porque preciso de viver o dia, seja também por precisar cada vez mais de um universo luminoso, transparente, rico, que talvez sirva para equilibrar os desafios pessoais por onde andam algumas sombras, dúvidas, cansaços. A minha ligação com a luz faz-me perceber que a minha essência é feita desse estado de espírito, mas também me lembra sempre que é algo que preciso de procurar de forma proativa, porque é fácil deixarmo-nos ensombrar. Pelo que vem de fora e, muitas vezes, pelo que está dentro...
PP - E o que é esta “Terra de Luz”?
MA - Esta “Terra da Luz” inspira-se, em primeiro lugar, num Portugal que vejo próspero, rico, cheio de dons, capacidades e talentos, e que senti necessidade de exultar. É também um universo com novos sons, novas palavras, aventuras, desafios de sair das fronteiras de uma casa onde tenho vivido (o Fado) e experimentar outras ‘terras’. Apesar do momento atual, o potencial que sinto no meu país e neste povo é ilimitado e inspirou-me imensamente para este trabalho e para este título.
PP – Um dos temas do CD é “Fado”, uma canção dos Heróis do Amor, escrita por Pedro Ayres Magalhães. Porquê a escolha deste tema?
MA – Este tema faz parte da banda sonora da minha adolescência. Recorda-me o meu irmão, os primos mais velhos, encontros e convívios inesquecíveis. Depois, a curiosidade de se chamar “Fado”, uma coincidência que só descobri quando escolhi cantar o tema, fez-me sentido pois, mesmo sendo uma versão afastada de qualquer sonoridade fadista, lembra-me que muitos outros artistas tiveram, desde sempre, esta atração pelo Fado, como eu própria que, mesmo afastando-me um pouco, nunca me separo completamente dele.
PP – Escreve mas também compõe algumas das músicas. O que é mais difícil?
MA – Naturalmente, a escrita, porque não tenho uma formação musical muito completa e, sobretudo, contínua, o que me limita de alguma forma. Normalmente ocupo-me das melodias e depois tenho sempre a colaboração dos músicos para “vestir” o tema, criar os arranjos e, por vezes, até a versão definitiva. Neste disco, a produção do Tiago Machado foi indispensável, nesta área. A forma mais desafiante e recompensadora de criar continua a ser, no entanto, criar música e letra ao mesmo tempo. Como se certas frases tivessem já uma musicalidade própria e com isso inspirassem sons e harmonias específicas e vice-versa. Torna-se é um pouco mais complicado, por vezes.
PP – Há ainda um tema em espanhol, “Ni Un Dia Más de Menos”. Como é que surgiu essa canção?
MA – Recebi a música do Ramón Maschio, músico e grande amigo argentino que há muitos anos me acompanha e com quem tenho criado alguns temas. A inspiração para escrever esta letra vem de uma história de amor que tenho o privilégio de acompanhar e que me alertou para a importância de nos desinstalarmos da acomodação ao medíocre, ao “menos”, às migalhas que muitas vezes aceitamos por não acreditarmos que merecemos mais e que devemos procurar sempre o melhor.
PP – Há ainda um tema cantado com o Hélder Moutinho...
MA – O Hélder, além de ter sido o meu primeiro manager, tornou-se, com os anos, um amigo querido e um ser que muito admiro. Um fadista incrível, um produtor que conquistou um lugar por mérito próprio, numa altura em que seria impensável ter-se manager no Fado. E conseguiu isto com muita garra e luta, e provou ter não só visão, como capacidade para abrir esse caminho para ele e, em seguida, para outros produtores que surgiram. Este tema é também uma forma de celebrar o nosso encontro e amizade, e a prova de que por vezes as pessoas podem seguir caminhos distintos, algo que nem sempre é fácil no momento, mantendo o mesmo carinho e bem-querer.
PP – Além do Hélder Moutinho, quais os cantores que a Mafalda mais admira, entre os fadistas?
MA – Sou daquelas pessoas que consegue encontrar em quase todos algo imperdível, seja o timbre, o repertório, o carisma, as subtilezas... Talvez por isso consigo escolher nomes, como Ana Moura, Raquel Tavares, Marco Rodrigues, Carminho, Ricardo Ribeiro, Kátia Guerreiro, António Zambujo, Carlos Leitão... Não pararia. Dos de sempre, além de Amália Rodrigues, os imperdíveis Carlos do Carmo, Camané, Fernando Maria, Hermínia Silva, Carlos Ramos, Fernando Maurício... E ficávamos aqui o dia todo...
PP – Para o ano, celebra 15 anos de carreira. O que mudaria e o que faria igual? O que aprendeu durante esta década e meia?
MA – Talvez mudasse a dedicação e concentração ao foco principal da minha carreira, porque, por natureza e muitas vezes por necessidade, acabei por enveredar por tantas áreas para além do canto, como a produção, que trouxeram em alguns momentos muito cansaço.
Manteria e mantenho seguramente a dedicação, a entrega, o amor ao que faço e o compromisso com a minha arte e com o meu público, o procurar sempre dar o meu melhor.
Aprendi a entregar-me, a confiar, a admirar profundamente um universo que começou por ser um hobbie, e, a dada altura, tornou-se em algo partilhado com os estudos e acabou tornando-se o mote da minha vida. Aprendi também a humildade, a par com a consciência do que sou, e o estar permanentemente em construção e evolução. Não sendo fácil, é fascinante e muito gratificante.
Por Helena Ales Pereira
Fotografia: Pedro Cláudio
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