Não que Newsom tenha o visual de uma sereia grega, um pássaro horrível com cabeça de mulher. Pelo contrário. Mora aqui uma diva que já foi modelo da Armani, numa sessão em que nasceram imagens capazes de provocar o despontar da libido mesmo no mortal menos dado a essas coisas do erotismo ou da sedução. Mas a sua voz, um registo entre a folk paradisíaca de Karen Dalton e o timbre acriançado de uma Minnie Mouse, é capaz de nos lançar um feitiço de todo o tamanho, fazendo com que o cortejo em que o Flautista de Hamelin conduzia uma população de ratos às águas do afogamento pareça um truque facilmente aprendido por uma criança.
Ontem à noite no CCB, assumindo todos os riscos de cair num encantamento, ninguém quis selar os ouvidos com cera de abelha, como o herói Ulisses.
Joanna Newsom entrou sozinha em palco e dirigiu-se à sua harpa, pousada sobre um tapete que aparentava poderes de elevação, para uma interpretação de 81. A banda, composta porcinco elementos onde se incluíam dois violinos, uma guitarra eléctrica, um trombone, um banjo, uma tambura ou um kaval, foi devidamente apresentada antes de se atirar a Have One On Me, tema que dá título ao último longa-duração e que constitui um dos seus momentos épicos. O triângulo musical do novo disco fechou com Easy, agora tocado ao piano.
Diante da sua harpa gigante, Newsom faz-nos imaginar uma artesã de tempos imemoriais, tecendo lentamente e com mãos de fada um vestido destinado a ser exibido num baile real por alguém que aguarda, sonhadora, a chegada do seu príncipe.
Cosmia, do álbum “Ys”, foi outro dos momentos altos da noite, com arranjos que recordam o universo de composição bjorkiana, onde floreados melancólicos são intercalados com uma explosão vocal.
Newsom mostrou-se bastante comunicativa, fosse ao perguntar ao público do que queria falar ou contando a forma como Ryan Francesconi, o compositor de “Have One On Me” e uma espécie de intérprete maior e maestro da banda que a acompanha em palco, foi assaltado na sala de um hotel em Barcelona. Até lançou um “muy obrigado” que, depois de muita insistência e confusão gramatical, se transformou num “tuy obrigado” – o correcto “muito obrigado” surgiu no regresso para o encore, talvez aconselhada por uma sósia de Edite Estrela que se escondia nos bastidores.
Em Good Intentions Paving Company foi como se tivéssemos entrado na igreja de Santa Newsom, navegando entre um catolicismo romântico e arrojado e um gospel capaz de converter um ateu mais fervoroso. Só faltou mesmo o clássico milagre do paralítico se levantar ao som do incrível solo de trombone que fechou a leitura musical inflamada.
No encore foi-nos oferecido Baby Birch, um tema onde às raízes celtas se junta uma guitarra que arranha como um gato bebé e uma bateria desgovernada que nos faz abanar timidamente a anca.
Antes de partir no seu tapete voador rumo a território espanhol, Newsom agradeceu e prometeu voltar em breve. Nós, pobres mortais, agradecemos a Newsom ter-nos abençoado com uma noite mágica e regressámos à vida urbana com pedaços de sonho a encherem-nos os bolsos e alma. E lá fomos beber um copo por ela.
Pedro Miguel Silva
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