Com o líder dos Mão Morta, entretanto emigrado, novamente «em cima do acontecimento», o quarto volume deste projeto chega-nos em formato duplo, com The Astroboy, Mundo Cão, Nyx, Peixe:avião, Estilhaços, Long Way To Alasca, Ermo, Cavalheiro, Dead Men Talking, Monstro Mau, The 1969 Revolutionary Orgy, Vai-te Foder, Palmer Eldritch, At Freddy’s House, Smix Smox Smux, Egg Box, Blão de Ferro, Governo, Mão Morta, Tatsumaki, Angúria, Hunted Scriptum e Spitting Red como protagonistas. À sombra de Deus, esta cidade é um rebuliço!
Palco Principal – Em 1988 chegava às lojas, por tua iniciativa e do Berto Borges, o primeiro volume de “À Sombra de Deus” – uma coletânea que se proponha preservar o legado musical da juventude bracarense. Como surgiu a ideia de reunir num disco o talento musical dos jovens de Braga?
Adolfo Luxúria Canibal – Na altura, havia uma grande movimentação juvenil, não só musical, mas de diversas vertentes artísticas. Uma grande atividade, um grande frenesim. Mas era uma coisa marginal. A faceta religiosa de Braga sempre se impôs muito mais do que qualquer outra atividade da cidade. Mesmo mais do que o comércio, que é outra atividade muito característica de Braga. Ainda hoje é assim, ainda hoje a cidade é conhecida como a cidade dos arcebispos. Por oposição, jamais foi conhecida por capital do comércio., por exemplo. A imagem da cidade está, indiscutivelmente, ligada à religião. Mas, à sombra desta imagem de Deus, existiam e existem outras coisas a acontecer.
PP – Daí o título – “À Sombra de Deus”…
ALC – Exatamente. Com esta coletânea pretendíamos mostrar que, à sombra desta imagem de Deus, existiam e existem outras coisas a acontecer em Braga, que nada têm a ver com Deus, mas que se passavam e passam à sombra desta realidade.
PP – Quando puseram o projeto em prática, esperavam que este tivesse continuidade até aos dias de hoje?
ALC – Não, francamente não. A nossa ideia era apenas recuperar algum património, entretanto desaparecido, da primeira metade da década de 80 – o que chocou logo contra a disposição dos protagonistas, que entretanto tinham arranjado novos grupos, nos quais estavam mais interessados, em detrimento de voltar ao passado. Já não tocavam aquelas músicas ou tocavam-nas de forma diferente, de forma que acabámos por centralizar o projeto no testemunho do que se fazia nesse ano. Não tinha a riqueza do que tinha sido feito na primeira metade da década, mas achámos que seria interessante ainda assim. Quanto mais não seja, ficaria fixado para o futuro. E a nossa ideia morria aí. Nunca pensámos que ia ter qualquer tipo de continuidade. Aliás, nem sequer fomos nós que prosseguimos com o projeto. Foi o Miguel Pedro que, em 1994, recuperou o projeto, adaptando-o à realidade da altura. E, dez anos depois, voltou a pegar no “À Sombra de Deus”. Foram fases mais fracas, em termos de rebuliço musical, mas, ainda assim, com atividade – uma atividade um pouco dispersa, sem aquele cariz de movimento, de interdisciplinaridade, de galvanização, mas que, no entanto, existia nas garagens dos bracarenses.
PP – Quais os critérios base na escolha dos protagonistas?
ALC – Só posso falar dos critérios que usámos pra o primeiro volume, mas penso que terá sido o mesmo para os dois que se seguiram. Pretendíamos fazer um levantamento e gravar o mais possível de bandas com atividade concreta e notória no ano anterior ou no próprio ano em questão, dentro de uma área específica – o Pop/Rock. Não englobámos, portanto, outras áreas da música, como a música clássica ou a música popular.
PP – Bandas com atividade concreta e notória… Não gravavam, então, bandas de garagem…
ALC – Não gravávamos, propriamente, bandas de garagem. Essas ficavam…bem…nas garagens. Mas o projeto serviu de alavanca a muitos grupos – grupos menos conhecidos, com atividade mais recente, que ainda não conseguiam ter um impacto maior a nível nacional.
PP – Algum exemplo?
ALC – Da primeira edição, os Rua do Gin – uma banda nova, conhecida dentro do núcleo das movimentações dos anos 80, mas perfeitamente desconhecida a nível nacional. E o CD conseguiu, precisamente, catapulta-los a nível nacional. Logo a seguir assinaram um contrato com uma editora espanhola, lançaram uma publicação luso-espanhola e o trabalho deles foi altamente elogiado.
PP – Estás confiante que aconteça o mesmo com as bandas visadas neste 4º volume?
ALC – Este 4º volume, tendo várias bandas novas, servirá, com certeza, para muitas delas darem o passo em frente, no que respeita a notoriedade que merecem e precisam.
PP – O nome Adolfo Luxúria Canibal conquista, logo à partida,a atenção e o interesse das bandas em participar no projeto?
ALC – É possível que as bandas me conhecessem. Não pessoalmente, pois só conheci pessoalmente as bandas novas que estão neste 4º volume por causa do disco, e vice-versa. Mas é também essa uma das funções do projeto: permitir o intercâmbio, criar este sentimento de coletivo, também proporcionado pelas salas de ensaio do estádio, onde, infelizmente, não podem estar todas. O disco cria este sentimento de pertença a um todo mais vasto do que a mera banda de cada um. As pessoas conhecem-se e trocam contactos. Por exemplo, os peixe: avião são um exemplo clássico de uma banda que foi criada devido ao facto de um conjunto de músicos, que não se conhecia entre si, ensaiar numa sala conjunta. Eles conheceram-se lá, trocaram ideias, encontraram gostos em comum e criaram os peixe:avião. E hoje são a banda mais conhecida de Braga, a seguir aos Mão Morta. Esta partilha é, portanto, importante para a música.
PP – Pode dizer-se que a partilha é uma característica da música de Braga…
ALC – Sim. Esta movimentação e acumulação de músicas de várias bandas acontecia muito nos anos 80, quando havia muitas bandas. Havia sempre elementos que se partilhavam. E isso é uma coisa que vem acontecendo, também, nos dias de hoje.
PP – O facto de Braga ser a capital europeia da juventude em 2012 impulsionou este novo 4º volume?
ALC – Foi essencial. Já pensávamos há algum tempo neste 4º volume, mas não conseguíamos financiamento para o disco. Quando surgiu o anúncio de que Braga seria a capital europeia da juventude, vimos logo que seria uma oportunidade para conseguirmos, finalmente, editar o 4º volume de “À Sombra de Deus”.
PP – Foi bom regressar ao projeto?
ALC – Voltar a este projeto, depois do Miguel ter mantido a sua continuidade, foi quase uma coisa natural. Nos anos 80, eu estava a estudar em Lisboa, mas vinha muito a Braga. Durante a preparação do segundo volume, estava a viver em Lisboa. Durante a preparação do terceiro, estava em França, de maneira que tinha pouco contacto com o meio musical bracarense. As pessoas estavam dispersas e nem sequer as conhecia. Em finais de 2004 regressei a Braga e, como tal, voltei a estar integrado no cenário musical bracarense, a conhecer as pessoas, a interessar-me pelo rebuliço da cidade. E a apostar nele.Não conhecendo, à partida, toda a gente, nota-se que agora há uma movida, um maior contacto, uma maior integração.
Isabel Cortez
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