Ghibli ou jiburi é o vento quente do deserto.
É também o nome de aviões italianos da Segunda Guerra Mundial. Com a ideia de ser um vento forte que atravessa a animação, Isao Takahata e Hayao Miyazaki, fundaram uma fábrica de sonhos japonesa.
Parceiros desde "Hols, Príncipe do Sol" (1968), os cineastas cedo criaram a empatia no confronto de ideias: Takahata afigurou-se como o experimental e realista; Miyazaki, o meticuloso e imaginativo. E foi assim que após a realização de alguns episódios de "Lupin III", uma pequena menina dos alpes lançou-os dos picos às nuvens.
Com o sucesso de "Heidi" (1974) e "Conan, o Rapaz do Futuro" (1978), desenhos animados bem conhecidos dos portugueses, e já depois do primeiro filme de Miyazaki “O Castelo de Cagliostro” (1979), unem-se a Toshio Suzuki e Yasuyoshi Tokuma para a fundação do caldeirão da animação tradicional, o estúdio Ghibli (1985).
Aprimorada pelo neorrealismo italiano, a literatura francesa, a quietude e o olhar meticuloso dos mestres japoneses do cinema Yasujiro Ozu e Kenji Mizoguchi, a essência dos dois realizadores construiu histórias de família e personagens apaixonadas e apaixonantes.
Histórias tradicionais do teatro japonês Kabuki, Noh e Bunraku, personagens andróginas ou femininas de grande relevo, animismo e a metamorfose inerente na espiritualidade xintoísta, foram o ponto de partida e o mote para dar asas à criatividade.
Tudo fluiu num mundo de anacronismos que exprimiu a tradição japonesa com o folclore europeu. Com inspiração ocidental, adaptaram também livros de autores como Mary Norton ("O Mundo Secreto de Arreity") ou Diana Wynne ("O Castelo Andante"), mas são os guiões originais de índole fantástica que melhor se intrincam no neorrealismo com causa, intervindo em temas polémicos, mascarados pela metáfora.
Com temas adultos a povoar o brilho destes filmes com encanto infantil, são personagens como bruxas amaldiçoadas, crianças sonhadoras, robôs jardineiros, magias e criaturas excêntricas, a dar corpo e voz a ideais ativistas: ambientalismo ("Pom Poko"), proteção das minorias ("A Princesa Monokoke"), a corrupção da inocência ("A Viagem de Chihiro"), o equilíbrio entre a natureza e o industrial ("Ponyo à Beira-Mar"), o balanço entre o Japão rural e a espiritualidade sobrenatural ("O meu Vizinho Totoro").
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Não existe uma ordem cronológica ou qualitativa para assistir a estas pérolas da animação do estúdio Ghibli. Mas existem dois momentos ímpares na filmografia do estúdio, onde as criações dos dois realizadores se enlearam e definiram a aura do estúdio.
Hayao Miyazaki e Isao Takahata viveram a reinvenção japonesa no pós Segunda Guerra Mundial. Essas memórias e ilusões marcaram a essência do sucesso duplo de 1988 - "Totoro" (Miyazaki) e "O Túmulo dos Pirilampos" (Takahata).
Antítese e complemento um do outro, narram as experiências de duas crianças. Enquanto "Totoro" é uma carta de amor, um retrato telúrico e mágico do Japão, "O Túmulo dos Pirilampos" é o seu reflexo negro: comovente, trágico e duro, onde a animação é misericordiosa.
25 anos depois, em 2013, a nova aurora do estúdio e dos dois mestres complementou-se outra vez em simultâneo: "As Asas do Vento" (Miyazaki) e "O Conto da Princesa Kaguya" (Takahata).
De belo a bélico num silêncio, "As Asas do Vento" é um romance épico, uma meditação poética sobre a natureza da criatividade, com as cores do crepúsculo pintadas no céu e um terramoto em chamas na terra.
Já "O Conto da Princesa Kaguya", de Isao Takahata, é uma aguarela de subtilezas em tons pastel que nos ilumina e faz sorrir. Baseado no conto popular japonês "O Conto do Cortador de Bambu", oito anos de mão livre esboçaram e desenharam o singelo neste filme espirituoso.
Em relação aos restantes filmes, podem ser escolhidos aleatoriamente para o mesmo efeito de deleite. Mas se a ideia de 21 filmes (a terceira vaga irá entrar no catálogo Netflix a 1 de Abril) poderá assoberbar-nos, para além dos já citados, recomendamos começar pelo soberbo "A Viagem de Chihiro", vencedor do Óscar para Melhor Animação em 2003; o ternurento "Kiki - A Aprendiz de Feiticeira" (1989); ou o aventureiro "Porco Rosso" (1992).
O estúdio Ghibli é uma obra fundamental na história do cinema, repleto de histórias mágicas que definiram estilos estéticos e alimentam a nossa esperança e coragem.
Isao Takahata já partiu e Miyazaki, com alegria dos 79 anos, por mais que anuncie a sua reforma, continua a preparar novos momentos de fantasia.
Aguardemos que o vento sobrevoe a nossa imaginação mais uma vez...
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