
Cerca de 300 profissionais da Cultura, sobretudo da área do Cinema, defendem a criação de canais de denúncia neutros para vítimas de assédio “e outras formas de violência de género”, que consideram “um problema estrutural e estruturante” na sociedade.
O texto publicado na quinta-feira no ‘site’ do jornal Público surge em resposta a uma “Carta aberta para debate no setor do cinema”, divulgada no sábado e assinada por cerca de uma centena de profissionais do setor do Cinema, que criticava a decisão do festival IndieLisboa de retirar da programação deste ano um filme e um projeto do realizador e produtor Ico Costa, após denúncias de violência doméstica.
Entre os subscritores do texto publicado na quinta-feira estão realizadores como João Salaviza, José Filipe Costa, Renée Nader Messora, Teresa Villaverde, Manuel Pureza, Filipa César, Raquel Freire, Vicente Alves do Ó, Catarina Mourão, Rita Nunes e Laura Carreira, atrizes como Joana Ribeiro, Sara Carinhas e Rita Blanco, a programadora Ana Isabel Strindberg, atores como Miguel Nunes e Matamba Joaquim, as Fado Bicha, o antropólogo Miguel Vale de Almeida e o artista visual Daniel Blaufuks.
Os assinantes começam por explicar que o texto “não propõe encerrar respostas quanto à decisão do festival ou à culpabilidade do acusado, salvaguardando o princípio da presunção de inocência”.
E, nesse sentido, estão alinhados “plenamente com o apelo da carta aberta [de sábado] à criação de, por um lado, de ‘ferramentas próprias, justas e legais que permitam que as vítimas de assédio e agressão encontrem um espaço seguro para as suas denúncias e justa proteção’ e, por outro, com a constatação da necessidade de ‘implicação do Instituto de Cinema e Audiovisual, bem como da tutela, na criação de canais de denúncia neutros’”.
No entanto, defendem que tal apelo “não pode estar baseado num argumentário que desconfia ‘a priori’ das vítimas”, considerando que a carta aberta “potencia, por um lado, o silenciamento de futuras denúncias e, por outro, contribui para a criação de um contexto de leitura de outros casos de abuso a partir das especificidades desta acusação concreta, sobre estes arguindo genérica e abstratamente”.
Em abril foi divulgada, através da rede social Instagram, uma denúncia assinada por uma alegada vítima de violência durante um relacionamento com o realizador Ico Costa, há cerca de quatro anos.
Na denúncia pública, são feitas referências a agressões verbais, físicas e psicológicas, “estratégias de intimidação, de chantagem emocional e de vitimização” por parte de Ico Costa, descrito como um “abusador em série” e com um “historial de agressões machistas”.
A mulher dizia ter conhecimento de “pelo menos [outras] seis vítimas” e que as agressões aconteceram “pelo menos ao longo de dez anos”.
No seu caso, diz ainda que tentou apresentar, mas não chegou a concretizar, uma queixa-crime contra o realizador: “A própria polícia só me levantou dificuldades, argumentando que não o ia conseguir levar avante por já não apresentar sinais visíveis de agressão física”.
Em declarações à Lusa, na altura, o realizador descredibilizou os relatos, dizendo que a denúncia era falsa e que desconhecia quem eram as alegadas vítimas.
Num ‘email’ enviado à agência Lusa, a denunciante disse que tem receio de se expor além do que já disse na carta pública.
“Dizer-se, como tenho lido, que estou a usar um pseudónimo faz parte de uma estratégia instituída no pensamento mais profundo da cultura portuguesa, que é a desacreditação da vítima, o apagar do rosto e da impressão digital de uma pessoa que não se consegue fazer ver por mais exposta que se coloque. Se falamos por ‘email’, é porque não existimos e somos um pseudónimo. Se damos a cara é porque temos cara de quem gosta de apanhar", afirmou.
Na sequência da denúncia, o IndieLisboa decidiu retirar da programação o filme “Balane 3”, de Ico Costa, e um outro projeto que o realizador produz, ainda por concluir.
“A situação exige integridade e responsabilidade social, princípios que regem o nosso código de conduta. Somos profundamente sensíveis a denúncias de violência e temos consciência de que o contexto social e legal da violência de género é, muitas vezes, revitimizante na forma como trata quem denuncia”, escreveu a direção do IndieLisboa, em comunicado.
Os subscritores da carta aberta divulgada no sábado questionam “a legitimidade de um festival de cinema para retirar da sua programação o trabalho de todas essas pessoas, lançando sobre ele opróbrio e suspeitas que em nada lhes dizem respeito”.
Entre os profissionais do cinema que assinaram a carta aberta contam-se os realizadores Miguel Gomes, João Pedro Rodrigues, Rodrigo Areias, Sandro Aguilar, Gabriel Abrantes, Sérgio Treffaut, Salomé Lamas, Susana Nobre, Margarida Gil, Cláudia Varejão, Catarina Vasconcelos e Tiago Guedes, e atrizes como Maria João Pinho, Isabel Abreu, Ana Sofia Martins, Sandra Faleiro, Rita Cabaço e Leonor Silveira.
Em resposta, os subscritores do texto divulgado na quinta-feira salientam que esse “trabalho coletivo” é, “com frequência, altamente verticalizado, piramidal e recompensado de maneira desigual tanto em termos materiais, quanto simbólicos”.
“Como tal, o argumento de que porque um filme é o resultado de um trabalho coletivo não deve ser retirado de festivais devido à alegada conduta do seu realizador oculta a base material do regime de autoria em que atuamos enquanto sociedade”, sustentam.
Além disso, defendem que o problema “estrutural” do “assédio, e outras violências de género”, “não pode, nem tão-pouco deve ser aferido a partir de um caso concreto, que a carta aberta toma como exemplar, encontrando-se inerente a esta lógica o risco de descredibilização das vítimas de violência na sua generalidade”.
É por este e outros fatores apontados no texto, que os subscritores consideram que a “carta aberta para debate no setor do cinema” “não contribui para abrir o debate, mas para o fechar, obstaculizando futuras denúncias e intimidando potenciais vítimas”.
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