
Morreu aos 97 anos o mestre do documentário histórico e vencedor do Óscar Marcel Ophüls, que desmistificou a ideia de que a França resistiu à ocupação nazi durante a Segunda Guerra Mundial, informou a sua família nesta segunda-feira.
Marcel Ophüls "faleceu em paz a 24 de maio", disse o seu neto, Andreas-Benjamin Seyfert, à France-Presse.
Em 1969, provocou uma grande comoção na França com "Tristeza e Compaixão", que discretamente destruiu um dos mitos mais fortes do país, segundo o qual a França e os franceses sempre resistiram à ocupação nazi.
Com o documentário, mostrou como a colaboração com os nazis era generalizada, da elite até às pessoas mais humildes.
Proibido até 1981 na televisão pública francesa, que o financiara, foi um sucesso nos cinemas a partir de 1971, apesar da sua duração (4 horas e 15 minutos).
Marcel Ophüls disse que não pretendia julgar a França.
"Durante 40 anos, tive que suportar todas as patetices de que era um filme de acusação. Não tenta julgar os franceses", insistiu.
"Quem pode dizer que a sua nação ter-se-ia portado melhor nas mesmas circunstâncias?", questionou.
Para se defender desse sucesso, que considerava um tanto fortuito, Marcel Ophüls gostava de destacar que se tratava de um filme encomendado, feito na hora certa.
"Acredito que há momentos na história em que, se não formos nós a fazê-lo, serão outros. Em 1969-1970, o mito gaullista-comunista estava a chegar ao fim. Alguém precisava estourar o balão algures", disse à revista Les Inrocks em 2014.
Marcel Ophüls nasceu em 1 de novembro de 1927, filho da atriz alemã Hilde Wall e do famoso realizador judeu alemão Max Ophüls, conhecido por obras como "Carta de Uma Desconhecida", "A Ronda", "O Prazer", "Madame de..." e "Lola Montès".
Fugiu para a França com o pai e os cineastas Billy Wilder e Fritz Lang, antes de escapar através dos Pirinéus e chegar aos EUA em 1941.
Cresceu em Hollywood e foi soldado no Japão em 1946. Ao regressar à França em 1950, começou a carreira como assistente de realização, nomeadamente no último filme do seu pai, "Lola Montès".
Amigo próximo de François Truffaut, trnasferiu-se para trás das câmaras em 1962 com um dos segmentos do filme coletivo "O Amor aos Vinte Anos" e experimentou a ficção ("Casca de banana", em 1963, com Jean-Paul Belmondo e Jeanne Moreau; "Fogo à Vontade", em 1965) antes de optar pelo documentário, contratado pela ORTF, a emissora pública de rádio e televisão francesa.
O seu encontro com Alain de Sedouy e André Harris, diretores de um programa de documentários na ORTF, levou, após algumas reviravoltas, a "Tristeza e Compaixão".
O seu estilo era o de uma subjetividade resoluta, questionar com bisturi. O Holocausto obcecava-o: "Não acredito em culpa coletiva", dizia o homem para quem os documentários eram "um remédio contra a falsa seriedade das comemorações".
O seu método: escolher uma ideia concreta, uma base que lhe dava mais liberdade do que um argumento, conduzir entrevistas em profundidade com testemunhas e, em seguida, fazer uma extensa montagem com citações musicais e cinematográficas como contraponto.
"Hotel Terminus", dedicado a Klaus Barbie, comandante da Gestapo na cidade de Lyon entre 1942 e 1944 e um dos mais conhecidos criminosos de guerra do III Reich rendeu-lhe o Óscar de Melhor Documentário em 1989.
Em "Veillées d'armes" (1994), uma entrevista em Sarajevo com um ator que perdeu as pernas após um bombardeamento na guerra, é pontuada por excertos de Shakespeare — "Henrique V" (1944), de Laurence Olivier — e musicais — "Canção Triunfal" (1942), de Michael Curtiz.
"Os documentários continuam a ser encenados", explicava o cineasta à France-Presse numa entrevista, detestando comentários e "hipocrisia falsamente objetiva", mas também a mistura repentina de realidade e ficção.
Ser fluente em três idiomas ajudou-o a entrevistar o nazi Albert Speer para "The Memory of Justice" (1976), investigando os Julgamentos de Nuremberga, e o espião da Alemanha de Leste Markus Wolf para "November Days" (1991), após a queda do Muro de Berlim.
Após o fracasso comercial de "Veillées d'armées", refugiou-se em Béarn, no sudoeste da França, e permaneceu sem trabalhar durane muitos anos. Até "Un voyageur" (2013), que estreou numa sessão esgotada no Festival de Cinema de Cannes.
Um diário de viagem íntimo intercalado com trechos do cinema clássico, incluindo filmes de Ophüls pai, este último filme levava o realizador de volta aos lugares memoráveis da sua juventude na Suíça, EUA e França.
Segundo sa ua família, Marcel Ophüls estava a trabalhar na altura da sua morte num filme quase concluído sobre a ascensão da extrema direita na Europa e nos EUA e o conflito israelo-palestiniano. Nele, examinava a ocupação dos territórios palestinianos e a possível ligação entre essa situação e o ressurgimento do antissemitismo na Europa.
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