O “carisma” e a “força extraordinária” de Ghoya, figura de proa do rap crioulo, fizeram com que João Miller Guerra decidisse dedicar-lhe um documentário, “Complô”, que tem estreia mundial esta semana, no 36.º Festival de Cinema de Marselha.

O que começou como a ideia de dedicar um documentário ao rap crioulo acabou por transformar-se num retrato de Bruno Furtado, que na música é Ghoya, nascido em Portugal, filho de mãe santomense e pai cabo-verdiano, mas a quem foi negada cidadania portuguesa, como a toda uma geração de filhos de imigrantes.

João Miller Guerra recordou, em entrevista à agência Lusa, que conheceu Bruno Furtado há mais de 15 anos, nas filmagens de “Li Ké Terra”, cuja realização partilha com Filipa Reis e Nuno Baptista, e que conta a história de Miguel e Rúben, descendentes de imigrantes cabo-verdianos que vivem, ou pelos menos viviam na altura, em Portugal, sem documentação, num bairro nos subúrbios de Lisboa.

“São dois rapazes que estão completamente estagnados por falta de obtenção da nacionalidade. E o Bruno é mais um. Estava nessa situação e está”, disse.

Bruno é meio-irmão de Rúben e tem uma breve aparição em “Li Ké Terra”. “Sentimos que ele era uma personagem com imenso carisma, com uma força extraordinária”, partilhou o realizador, lembrando que “no pouco tempo que Bruno aparecia era a cantar uma das suas músicas”.

Depois de “Li Ké Terra”, João Miller Guerra continuou a trabalhar nos mesmos contextos sociais e foi-se apercebendo que Ghoya “é uma figura incontornável do rap crioulo, que às vezes é referido como o Tupac português”.

As filmagens começaram em 2019 e à medida que iam acontecendo a realidade impôs-se e João Miller Guerra sentiu que “o filme podia crescer”, “além de ser um retrato de um tipo que é um grande cantor de rap crioulo, um rapper”.

“A dada altura apanhamos a morte do [ator] Bruno Candé [assassinado em julho de 2020 numa rua em Moscavide, num crime motivado por ódio racial], e o Bruno [Ghoya] é ativista político contra o racismo e muito ligado às manifestações”, referiu o realizador, justificando assim as primeiras imagens de “Complô”, captadas numa das manifestações contra o racismo que aconteceram em Lisboa após a morte do ator.

Além do ódio racial e do “problema que assola toda uma geração” de pessoas nascidas em Portugal mas que não têm nacionalidade portuguesa, o filme aborda também a vida dentro das prisões.

João Miller Guerra destaca o momento no filme em que Bruno descreve o que é estar preso em Portugal. “Não me lembro de ver em filme alguém falar com aquela clareza sobre o que se passa nas prisões e porque é que se passa assim”, disse.

O realizador foi fazendo o filme “com o Bruno, e não sobre o Bruno”, como faz questão de dizer, ao longo de quatro anos.

Em 2023 acabou por dar as filmagens como concluídas.

“Tive muita esperança que o álbum [de Ghoya] ficasse pronto e o filme cobrisse também a saída do álbum, mas a dada altura percebi que as minhas expectativas não tinham de ser as do Bruno. Resolvi terminar o filme e deixar o processo um bocadinho em aberto”, contou.

O realizador faz uma distinção entre Bruno - o ativista, ex-recluso, pai que não conseguiu ir assistir ao nascimento do filho em Londres porque não tinha documentos - e Ghoya - o rapper cujo processo de gravação de um álbum é acompanhado pelas câmaras.

Mas em “Complô”, filme que “pelos piores motivos se foi tornando cada vez mais pertinente”, os dois misturam-se.

O título do documentário é o nome de uma das músicas de Ghoya. “Pareceu-me que a vida dele em parte tem sido um grande complô contra ele e achei que devia ser o nome”, disse.

O filme tem estreia mundial no 36.º Festival Internacional de Cinema de Marselha (FID Marseille), que começa hoje, estando agendadas exibições na quarta-feira e no domingo, dia em que termina o certame.

João Miller Guerra estará presente no festival, mas Ghoya não, por estar a aguardar a autorização de residência. Algo que o realizador lamenta, porque, além de tudo, gostava que a apresentação do filme fosse acompanhada por uma atuação do rapper, numa cidade onde “há uma grande comunidade cabo-verdiana”.

Esse plano fica para mais tarde, quando o filme se estrear em Portugal.

“Há uma expectativa grande que o filme entre no DocLisboa”, partilhou.