9 de julho
O holandês não passou por nós a voar, chocou com um público que não estava preparado para o sacrilégio que aí vinha.
"Benedetta", do realizador Paul Verhoeven, poderá sair da Croisette sem um prémio, mas certamente é um filme que dará muito que falar - e dores de cabeça às mais variadas instituições religiosas.
Protagonizado por Virginie Efire ("Sibyl"), que depois disto será uma estrela feita em França, a nova obra do realizador de "Robocop", "Instinto Fatal" e "Showgirls" é a prova de que necessitávamos de que o revisionismo que tem agraciado a sua carreira não era inequívoco algum.
Depois da (re)descoberta da Cahiers du Cinéma, o anterior "patinho feio" tem vindo a ser consagrado como um autor reconhecido pela camada mais intelectual da cinefilia.
"Ela" (2016), a viagem turbulenta de uma mulher em furiosa perseguição pela sua fantasia sexual (Isabelle Huppert), apaixonou o festival, que decidiu dar novamente palco ao realizador com "Benedetta" (que já estava pronto para a edição cancelada do ano passado), onde encontramos o mesmo ponto - o sexo como jornada visceral - mas envolvendo uma freira lésbica em plena Idade Média e a iminente ameaça da Peste (uma pandemia, para ceder a um jogo de coincidências).
Inspirado num livro de Judith C. Brown, por sua vez baseado em factos reais, somos envolvidos em "Benedetta" no recobro carnal que oscila pelo simbolismo das imagens sacras ou da troça total aos estandartes da religião cristã. Depravação, heresia e muita blasfémia, especiarias usadas para apimentar o que parecia ser inicialmente uma produção histórica "à la" francesa.
Mas entre espaços de erotismo sem rédeas (não esperemos aqui o cuidado de não ferir suscetibilidades destes novos tempos) e a satirização traquinas a santos e pecadores, verificamos um regresso de Verhoeven ao seu estado mais desengonçado e "trash": o sangue escorre e salpica em jeito masturbatório, da mesma forma que os corpos, femininos ou masculinos, são vislumbrados e emoldurados por estas lentes.
Esta é uma proposta obviamente imprópria para conservadores e religiosos fervorosos, até porque, de um modo provocador, "Benedetta" é uma obra "concebida pelo Diabo" e com muito orgulho nisso para seduzir o Paraíso. Desde Ken Russell e Pier Paolo Pasolini que não víamos tamanho sacrilégio. Um festim de perversidades passou por Cannes.
Luta pela Palma de Ouro entre narrativas de privilegiados e de desgraçados
8 de julho
Matt Damon, em Marselha, tentando provar a inocência da filha, condenada pelo homicídio da sua colega de quarto, é, à primeira vista, mais um "thriller" à americana com o ator novamente a vestir o disfarce de Jason Bourne. Mas "Stillwater" é tudo menos isso pois está mais interessado no choque cultural entre um americano e a sua definição de "estrangeiro", que vem de um mundo "tão seu" para terras francesas e embate no seu conformismo, revelando duas diferentes essências culturais sem nunca se perder em preguiçosos estereótipos.
À medida que a investigação prossegue, o protagonista terá de lidar com as consequências dos seus atos indulgentes e das suas “americanices”, enquanto, do outro lado, os franceses são mais do que as pessoas arrogantes e amantes de baguetes, como deu a entender o equívoco fenómeno da Netflix "Emily em Paris". Aqui, a língua francesa perdura e prolonga e Damon não cede à ação fácil, integrando-se num sóbrio drama de alicerces existencialistas e de ambiguidade que faz falta lá para os lados de Hollywood.
Dirigido por Tom McCarthy, automaticamente recordado pelo vencedor dos Óscares "O Caso Spotlight" (deste lado, apontamos pequenas preciosidades na carreira como "O Visitante" ou a "A Estação"), "Stillwater" soa a filme americano e, na verdade, é o mais americano possível. Ao mesmo tempo, parece ter tão pouco dessa predominante culturalidade.
Mas o trabalho de McCarthy não entrou na Competição, ficando-se pelo prestígio de uma Sessão Especial, pelo que, na corrida à Palma de Ouro, emergiu a "culpa ocidental sentada num sofá" de "Julie (en 12 Chapitres)", do realizador norueguês Joachim Trier ("Thelma"), coescrito pelo seu habitual colaborador, Eskil Vogt.
No terceiro da sua trilogia de Oslo, após "Reprise" (2006) e "Oslo, 31 de Agosto" (2011), acompanhamos aquela que é ditada como a "pior pessoa do mundo", Julie (Renate Reinsve). Como tantos outros noruegueses, é uma privilegiada e vive sob esse privilégio, mas ao contrário do filme de François Ozon também em competição ("Tout s'est bien passé"), aqui o objetivo é dissecar e descodificar alguns mitos sobre estes "problemas de Primeiro Mundo", a começar pela maternidade, afetividade e sexo.
Com isto, Trier leva-nos ao desejo, ao autodidatismo, ao existencialismo em ambientes de futilidade e de materialismo, e consegue ao longo dos prometidos doze capítulos (mais prólogo e epílogo) apresentar um conto moral com as suas devidas consequências emocionais. Uma pequena joia sobre o quanto crescemos vivendo.
Ainda na Competição e vindo do Chade (mesmo sendo uma coprodução entre França, Alemanha e Bélgica), temos "Lingui", de Mahamat-Saleh Haroun ("Grigris''), simples e encantado pelos seus trabalhados planos de conjunto, com um enredo de mulheres em conflito com um rol de temas tabus da sociedade chadiana (como também em qualquer uma das outras).
Invocando-se o aborto, a violação, a opressão e emancipação feminina, com um "dedo médio" levantado à religião, imagina-se que pitadinhas disto originaria um valente “soco”. Infelizmente, o resultado final do filme está mais próximo da condescendência do que o deslumbramento, pelo que a coragem de trazer essas temáticas "proibidas" é descompensada por uma trama sem carga dramática, com resoluções fáceis e alguma insegurança na abordagem. Mesmo assim, há quem o aponte como um favorito à estatueta.
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