“There ain't no grave can hold my body down.”
Entre correntes que se arrastam pelo chão, a voz de Johnny Cash ecoa no trailer de “Django Libertado”.
“There ain't no grave can hold my body down.”
Quentin Tarantino pediu emprestados o carisma da voz de Cash e o contexto instantâneo para onde a música remete e decidiu situar aí a história de “Django Libertado”, um filme de 2012 sobre o fim da escravatura nos Estados Unidos da América.
Podia dizer-se que “Django Libertado” é um filme sobre heróis, um western clássico. Podia dizer-se que é um filme onde a procura de justiça se torna vingança, movida por um ímpeto romântico. Na verdade, “Django Libertado” é tudo isso, em três longas horas.
Logo a abrir, Tarantino define uma meta que daria para alimentar todo um filme: o alemão King Schultz (um justiceiro que mata foragidos da lei a troco de recompensas, interpretado por Christoph Waltz) compra o escravo Django (Jamie Foxx), porque este saberá identificar três malfeitores com a cabeça a prémio. Passam poucos minutos até o objetivo se dar por cumprido. A narrativa abre-se, então, numa segunda parte do filme, quando ficamos a saber mais sobre Django, separado da sua esposa, Broomhilda (Kerry Washington), depois de os dois escravos terem tentado fugir. Schultz torna Django o seu parceiro/caçador de recompensas, passam meses nesta atividade até que decidem procurar Hildi.
Localizam-na em Candyland, quinta do maquiavélico Calvin Candie (Leonardo DiCaprio), cujo passatempo é dedicar-se de forma quase obsessiva às lutas mandingo, em que dois escravos combatem até à morte. Schultz e Django concebem um plano para cair nas boas graças de Candie e, com ele, fechar negócio para comprar Hildi. Só que o plano é desvendado pelo astuto Stephen (antigo escravo feito senhor, que só podia ser interpretado por Samuel L. Jackson), Schulz acaba por morto e Django, que já era livre, vê-se aprisionado pelos homens de Candie. Numa terceira parte do filme, o herói alcança a sua vingança, resgata Hildi e os dois fogem a cavalo.
O final do filme soa a Disney, é verdade, porque a narrativa parece encaminhar-se, a dada altura e de forma não planeada, para mimetizar a lenda que Schulz conta a Django: uma princesa alemã é resgatada por um herói que trepa montanhas, por não ter medo de o fazer; que mata dragões, por não ter medo de o fazer; e que atravessa círculos de chamas, porque valia a pena fazê-lo para chegar até ela.
Mas “Django Libertado” não tem nada de Disney, ou não estivéssemos nós perante um filme de Quentin Tarantino, esperando desde logo o habitual banho de sangue. Violência gratuita ou não... Já nem vale a pena perder tempo com esse debate, porque Tarantino impõe perguntas mais pertinentes. (Refira-se apenas que uma das cenas mais impressionantes do filme mostra um escravo despedaçado por cães de caça, como punição por tentar fugir.)
Na sua dimensão histórica e política, “Django Libertado” coloca o desejo de vingança como tema central da narrativa. Django pergunta mesmo o que há para não gostar num plano que lhe permitirá ser pago para matar homens brancos. Ao apontar o dedo aos horrores da escravidão, no Sul dos Estados Unidos, no advento da Guerra Civil, Tarantino parece justificar a violência com que Django acaba o filme, a disparar contra todos e a castigar particularmente Stephen, que Samuel L. Jackson torna uma personagem cómica por ser um negro que se coloca ao lado dos brancos ao maltratar os escravos de Candyland. Algumas críticas ao filme consideram exagero o uso da palavra “nigger”, como um insulto repetido mais de 100 vezes no guião. Tal como o banho de sangue, esta acaba por ser uma marca de Tarantino que já passa quase sem se notar.
Assim sendo, o que é que faz de “Django Libertado” um filme tão aclamado e não apenas mais uma história de Tarantino? Se as marcas da realização já não surpreendem, por que venceu o Óscar para Melhor Filme daquele ano e por que motivo veio parar a esta lista? Podendo parecer contradição, a resposta é simplesmente Quentin Tarantino.
Tarantino explicou que, por muito empenho que possa colocar na criação de uma história como “Django Libertado”, tem uma única oportunidade de fazer com que ela perdure no tempo – através das personagens. Contratar os atores certos para dar vida a essas personagens é, por isso, decisivo para o sucesso do filme.
Quando recebeu o Óscar da Academia para Melhor Ator Secundário no papel de King Schultz, Christoph Waltz agradeceu a Tarantino dizendo que o realizador escalou a montanha por não ter medo de o fazer; porque matou o dragão por não ter medo de o fazer; e porque atravessou o fogo porque valia a pena fazê-lo. Waltz aproveitou a lenda alemã que a sua personagem relata para descrever a ousadia de Tarantino, apostado em fazer filmes originais com elencos de peso e histórias diferentes, numa era de super-heróis, comédias românticas e grandes sagas de aventura.
A mestria de Tarantino não está apenas na originalidade da ideia e na escolha dos atores, mas no facto de fazer filmes com o rigor e a exigência que lhe dão fama de alucinado. Jamie Foxx conta, numa entrevista, que Tarantino o chamou à parte para recentrar o rumo da sua personagem, porque ele era um escravo, não era um tipo cool e só no fim da história podia revelar-se o herói. A forma como Foxx recorda a conversa faz lembrar os devaneios angustiados de Woody Allen e perguntamos quanto de obcecado terá Tarantino.
“Django Libertado” tem mérito também por homenagear uma linha do cinema que parece seduzir o realizador, o spaghetti western, e faz uma alusão ao Django original, assinado por Sergio Corbucci em 1966. Tarantino foi buscar mesmo o protagonista daquele filme, Franco Nero, para o elenco, sendo já aquela história uma adaptação de Yojimbo (1961), de Akira Kurosawa.
Vendo além das idiossincrasias de Tarantino, “Django Libertado” é uma história longa mas cheia de momentos cinematográficos interessantes, onde brilham atores de renome e reputação merecida.
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