Dizia-se um homem vadio e só esses iam para o boxe. Belarmino Fragoso foi um campeão nacional antes de regressar à miséria. Fernando Lopes estreou, em 1964, o documentário biográfico sobre aquele herói, que é um retrato fiel de Portugal e dos portugueses.

Foi no final de uma noite que Fernando Lopes o conheceu, algures no eixo Parque Mayer/Ribadouro. Em 1964, quando “Belarmino” estreou, o protagonista da história já não era um herói do boxe nacional mas um campeão caído em desgraça, um retornado às origens humildes de onde nunca saiu verdadeiramente.

A proposta do realizador era, como disse, trabalhar “sobre a cara de uma pessoa, de uma forma documental”. Fernando Lopes apertou os planos. Baptista-Bastos conduziu a entrevista. Belarmino Fragoso contou a sua história: nascido e treinado no bairro da Mouraria, tentou o pugilismo como forma de ganhar mais uns trocos do que tirava como engraxador. Albano Martins, empresário do boxe, viu nele uma promessa e tornou-se seu manager.

Como o percurso de Belarmino se desenrolou, nunca saberemos verdadeiramente. No documentário, Albano Martins rejeita ter enganado Belarmino Fragoso. O pugilista diz nunca ter recebido o dinheiro que se fazia com os combates, numa altura em que o boxe chegava a pagar-lhe 30 mil escudos. Para refutar as críticas, o empresário Albano Martins diz ter sido o comportamento do pugilista que o devolveu à miséria.

Marialva e boémio, Belarmino não nega os engates mas parece rejeitar a falta de profissionalismo ao referir-se ao boxe com o respeito de uma nobre arte. (A montagem não resiste a colocar um plano da cara de Belarmino num cabaré, depois de o vermos a jurar que não frequenta tais ambientes.)

Aquela miséria parece ser um dos protagonistas da história, que o realizador introduz em diferentes momentos. É o retrato social que o cinema novo português quis revelar. E Belarmino é um espécime único. O pugilista fala constantemente da fome: da fome que sentia antes de ir parar ao boxe; da fome que tinha quando combatia, tantas vezes sem uns trocos para beber um copo de leite e comer uma bola de Berlim antes de entrar no ringue; e da fome que lhe voltou, como doença antiga, no final da carreira.

O documentário representa bem essa miséria da década de 1960 e a resignação que se respirava durante o Estado Novo, onde até sonhar com uma vida melhor parecia ser um direito reservado a ricos.

“Os engenheiros não vão para o boxe”, só “homens como eu, vadios”. Sentimos empatia por aquela personagem, porque este cinema é sobre o Portugal de todos nós. Belarmino é um analfabeto com um português rude, mas frequenta os clubes lisboetas com a nata da sociedade. É o homem de família que se preocupa em pôr comida na mesa. É o pobre explorado pelo patrão. É um trabalhador de sol a sol para cuidar das filhas. É o bom malandro, que não resiste a um engate. É o pobre herói que vinga ao tornar-se campeão, mas não tem pudor em reconhecer que já pediu ajuda. Belarmino é o triste que perde a fama e a fortuna e volta a ser apenas o homem humilde a tentar sobreviver.

“Somos tão bons a perder, quando não queremos ganhar”, cantam os Linda Martini na música que dedicaram a Belarmino.

Belarmino
Belarmino

À data da filmagem, faltava um ano para o que Belarmino julgava ser o seu fim de carreira. Com pena de abandonar o ringue, dizia querer ser treinador e fazer campeões, porque tinha categoria para isso. “Assim a vida me permita.” Não permitiu. Passou a deambular pelas ruas de Lisboa, como o documentário mostra, e a trabalhar como colorista de fotografias.

Terá Belarmino sabido do alcance deste documentário, que é muito mais do que uma reportagem? Terá recebido algo por entregar a sua história a Fernando Lopes? O boxeur foi mesmo protagonista deste filme, onde se destaca a cena do combate. O ritmo é mais lento do que se esperaria. Para acrescentar dinâmica, as cenas de golpes são intercaladas com fotografias das investidas e das fugas, elas sim a mostrar a garra de um pugilista que aqui tanto se gaba do seu talento. “Sou apenas um homem”, acrescenta logo a seguir.

Fernando Lopes joga com os elementos cinematográficos. Silencia o combate de boxe num momento em que Belarmino aparece a beber água. O que ouvimos é o som de um repuxo na praça do Rossio, onde se vê depois o pugilista. A técnica podia ser usada nos dias de hoje. A mistura entre talento, humildade e gabarolice é única. A tendência para o infortúnio, essa, é bem portuguesa. “Belarmino” é a história de Portugal e dos portugueses. “Belarmino” somos todos nós.

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