Em termos de situação no espaço, a música renascentista não surge na Itália, Foi uma explosão criativa que se deu no Nordeste da França e no que é hoje a Bélgica e a Holanda..
Sim, o fenómeno que hoje intitulamos Renascimento parece-nos indissociável de Itália, mas na verdade foi surgindo e desenvolvendo-se em vários países europeus. A Flandres, com as suas cidades riquíssimas graças ao comércio internacional e uma paz relativa garantida pelos Duques da Borgonha, ofereceu o contexto ideal para uma nova cultura urbana, mais cosmopolita e requintada...
Mas a nova visão do mundo, importantíssima para o nascimento do Humanismo foi um contributo sobretudo dos países ibéricos e, mesmo no campo das artes a pintura a óleo, esta é uma invenção flamenga, só mais tarde introduzida em Itália.
Fala em revolução no mundo da música. Em termos técnicos, como se caracteriza a passagem da música medieval para a do Renascimento? Há modificações na pauta e no sistema de notas e a adoção da polifonia, por exemplo...
Bem, em termos técnicos, a passagem da música medieval para a música renascentista é muito fluída e só a nossa obsessão atual em compartimentar e classificar tudo justifica esta etiquetagem. Nem todos os musicólogos conseguem, na verdade, traçar a linha divisória no mesmo local.
Para muitos Binchois e Du Fay são ainda expoentes da música medieval, para outros é Dunstable que estabelece a fronteira; para outros ainda só com Josquin des Près é que se pode falar de verdadeiro "renascimento", e há estudiosos que acreditam que só com a geração de Palestrina, Lasso e Byrd é que se atinge algo comparável à tríade de Leonardo, Miguel Ângelo e Rafael...
Inclusivamente, se nos guiarmos apenas pela ideia de que o Renascimento só acontece com a redescoberta e imitação da estética clássica dos antigos gregos e romanos, então só com o Barroco e a invenção da monodia acompanhada e da Ópera, em 1600, é que se estabelece um paralelo verdadeiro entre música e artes visuais...
A "revolução" que ocorre neste período é imensa vista da nossa perspetiva. Os seus contemporâneos estavam conscientes de que havia algo a mudar - a célebre apreciação sobre a "contenance angloise" louvando a música de Dunstable, por exemplo, ou os elogios dos contemporâneos respetivos de Du Fay, Ockeghem ou Josquin, que viam neles a sumidade e perfeição da arte musical, quase como heróis que haviam "inventado" uma nova música e superavam todos os seus antecessores. Mas, na verdade foi sobretudo um depuramento, um refinamento...
A teoria modal, por exemplo, foi aprofundada, surgiram várias especulações, sistematizações de classificação, tentaram equiparar-se os modos conhecidos aos modos gregos clássicos, mas não deixou de vigorar no fundo o mesmo sistema modal que já vinha de muito antes.
Sistematizaram-se também as regras do contraponto, do tratamento da dissonância. A notação musical também sofre neste mesmo momento uma evolução incrível, mas persistem alguns arcaísmos no sistema de proporções, nas “ligature”, na notação dos acidentes, que se vão manter em muitos casos até ao século XVII.
O lado mais revolucionário é, sem dúvida, a crescente preocupação com a expressão de ideias e afetos pessoais, com maior atenção ao claro entendimento do texto poético, com a prosódia correta (acentuação das palavras, sílabas longas e curtas, etc.).
Ocorre a invenção e o recurso a todo um imaginário musical que corresponde ao universo literário, estabelecendo entre os dois uma maior harmonia. Esse imaginário se manteve atual até ao século XX e ainda hoje o entendemos, ainda que parcialmente... A partir deste momento a música passa a ter um novo objetivo: comunicar os sentimentos de forma eficaz.
Em termos temáticos pode-se dizer que segue o espírito geral do Renascimento? Há a exploração do legado clássico e também um debate mais vincado entre espírito laico e religioso...
Nos séculos XV e XVI é criado um vastíssimo reportório de obras vocais profanas; são compostas centenas ou milhares de “Chansons”, mas também de Madrigais, Frotolle, Vilanelas, quase todos em torno de textos poéticos sobre a temática do amor cortês, de inspiração petrarquiana.
Mas também há obras com textos políticos, elogiosos, até humorísticos ou mesmo eróticos. Começa-se também a desenvolver a música instrumental. Mas o homem desta época continua a ser eminentemente religioso, o Humanismo é sempre um humanismo cristão. Os principais pensadores, criadores, artistas, são homens da igreja ou a ela fortemente vinculados.
A igreja continua a ser a principal encomendadora de obras, a liturgia é o destino de esmagadora maioria delas. É praticamente impossível falar num espírito laico no Renascimento, isso é uma confusão que nos foi imposta muito tardiamente pela necessidade de simplificar a História, de separar os "bons" dos "maus" e os "evoluídos" dos "atrasados"...
Mesmo os maiores críticos da religião eram, neste período, homens profundamente religiosos: Erasmo, Tomás Moro, Lutero... Quanto à exploração do legado clássico, como eu disse, se formos a ser rigorosos isso só acontece só mesmo muito no final do período que convencionamos chamar "Renascimento" e já quase no despontar do Barroco, quando a Academia Florentina do Conde Bardi começa a procurar reviver a música dos gregos e romanos...
Neste momento – século XV, início do XVI – há sobretudo a tal preocupação com o entendimento e expressão do texto, com suscitar afetos. É o início da deslocação gradual da música da esfera da Matemática (Quadrivium) para a da Retórica (Trivium) - segundo o currículo de estudos medieval.
A redescoberta e valorização da arte retórica é sem dúvida muito influenciada pela redescoberta/releitura dos clássicos gregos e romanos: Aristóteles, Cícero, Quintiliano... Como também já referi, vários teóricos - Tinctoris, Gaffurio, Glreanus, Vicentino, etc. - vão estar permanentemente a evocar as teorias musicais dos antigos clássicos, sobretudo os modos e os efeitos da música sobre as paixões e temperamentos humanos, como as de Platão...
E aí chegamos a Bosch, cujos quadros continuam a fascinar o público mais de 400 anos depois. Na conferência propõe uma ligação entre um período cheio de inovações musicais e os quadros dele.
Sim, os quadros de Bosch são fascinantes, e por isso por vezes cai-se em certos exageros, como ver no pintor uma espécie de revolucionário insidioso, um Salvador Dali "avant la letre", um membro de sociedades secretas, um crítico acérrimo da realidade contemporânea, um visionário com poderes adivinhatórios, ou mesmo sob o efeito de alucinogénios...
Bosch é um filho do seu tempo, recorre a um imaginário medieval – basta olharmos as iluminuras, capitéis, vitrais e os bestiários medievais… Ele os utiliza através de uma técnica mais "desenvolvida", influenciada pela dos chamados "primitivos flamengos" na esteira de Van Eyck, Van der Weiden, Memling, etc,
Apesar de, comparados com eles, ser muito mais conservador e algo "frouxo" tecnicamente, ele dá-lhe um toque de "realismo fantástico", ou seja, pega num imaginário já muito desenvolvido e tradu-lo em imagens visuais que nos são aparentemente mais próximas, mas que são hoje muito mais ininteligíveis, misteriosas e exóticas do que eram para os seus contemporâneos...
As suas pinturas estão cheias de alusões ao mundo dos sons, ao ruído incessante e perturbador de qualquer cidade medieval: pregões, gritos, disparos, sinos, carroças a chiar, crianças a brincar... Nos seus incêndios parece que conseguimos escutar o crepitar das chamas e muitos dos seus demónios parecem imitir ruídos atrozes, assustadores, ensurdecedores.
Mas, contrariamente aos outros pintores contemporâneos, em que a música aparece com frequência associada à esfera celeste, da beleza, de beatitude – os anjos que cantam e tocam instrumentos – ou ao amor cortês e elegante, enquanto símbolos de harmonia, de entendimento, em Bosch os instrumentos parecem sempre associados ao Inferno, à tentação, ao impuro, ao castigo...
Eles são usados como instrumentos de tortura ou aludem à lascívia, ao alheamento, ao egoísmo... Só encontrei até agora um quadro - o Julgamento Final no Museu Groeninge de Bruges – em que aparece uma imagem musical claramente positiva, um anjo a tocar harpa no paraíso...
Mas, mais uma vez, é preciso termos algum conhecimento da linguagem simbólica do seu tempo para perceber as suas alusões. A gaita de foles, por exemplo, aludia à luxúria, mas alguém hoje sabe porquê? E porque é que aparecem músicos "crucificados" em harpas? Terão de vir à conferência para ficar a saber!
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