“Como a sombra que passa” é um livro que “nasceu de vários acasos” e terminou este ano na lista dos finalistas do Prémio Man Booker Internacional.
O escritor espanhol acredita cada vez mais em casualidades na literatura, e cita Fernando Pessoa, quando diz “todo o começo é involuntário”, para explicar o que se passou com este romance, que “nasceu de vários acasos”.
O primeiro foi descobrir a informação de que James Earl Ray, o assassino de Martin Luther King, sobre o qual o escritor andara a ler, tinha estado dez dias em Lisboa, durante a fuga que empreendeu após o crime, contou em entrevista à Lusa.
“Outro acaso foi vir celebrar o aniversario do filho”, que completava 26 anos e vivia em Lisboa. Nessa altura, recordou-se de ter estado na capital portuguesa em 1987, quando o filho era recém-nascido, em busca de inspiração para o romance “O Inverno em Lisboa”, livro que o consagrou.
“Outro acaso, o definitivo, foi em outubro de 2013”, altura em que procurava tranquilidade e um retiro, e a mulher lhe sugeriu que fossem a Lisboa.
No primeiro dia em que chegou, ao apartamento de uma amiga, com o projeto de um outro livro em que andava a trabalhar, sentou-se a uma secretária, com os seus papéis, cadernos e portátil e, nesse momento, recordou-se da história de Ray e da história do filho, foi para a internet pesquisar com detalhe os passos dados pelo criminoso em Lisboa, e foi nessa altura que diz que viu o livro.
“Foi uma pura soma de acasos e gosto disso, creio que é uma lição de humildade”.
O romance é então construído alternando três tempos e três enredos, sempre com a cidade de Lisboa como cenário e protagonista: os dias de fuga de James Earl Ray, em 1968, as noites do jovem Molina, em 1987, num registo confessional e introspetivo, de exposição da sua intimidade, e a do escritor que tece a narrativa nos dias de hoje.
Para consolidar estes enredos diferentes numa unidade narrativa, o autor precisou de encontrar um “equilíbrio”, o que era “muito difícil e muito perigoso”.
“A história de Ray sozinha não me convencia, por outro lado a minha própria história, tive medo que fosse egocêntrica, porque escritores a falar de escritores é uma coisa que me cansa muito”.
Ao mesmo tempo, porém, “a história tinha muito a ver com a minha própria vida, não era só a história de Ray, era também o desejo de explicar e explorar como nascem as histórias”, o que o autor faz, dando voz a si próprio no romance, contando como pesquisou exaustivamente sobre Earl Ray e como passou “demasiadas horas imerso na sua vida”, ao ponto de, numa confusão de consciências, acordar certo dia sem saber quem era.
Esta é outra das características deste livro, ser um romance sobre a forma como os romances se constroem: “de onde vêm, de onde saem, que lugar ocupam na nossa vida, que lugar ocupa a ficção na vida, e que ideia temos das histórias”.
“Quando vim a primeira vez a Lisboa em busca da outra novela, tinha uma ideia da literatura muito diferente, a ideia romântica de que é uma construção voluntária e artificial, que é melhor do que a vida, que a vida é desordenada e medíocre, enquanto a literatura tem ordem e é brilhante. A lição que aprendes com o tempo, é que é o revés: o bom que tem a literatura é quando se parece com a vida, e a vida é desordenada e amarga e não tem finais claros”.
A exposição da sua intimidade foi um dos momentos mais difíceis e emocionalmente desgastantes para o autor, que confessa ter, por vezes, chegado a pontos em que pensava se deveria prosseguir.
“Não pensava em falar da minha vida. Pensava em escrever uma coisa literária. Recordei-me que quando escrevia ‘O Inverno em Lisboa’ nasceu o meu filho. Então pus-me a pensar nisso. Não pensei: vou fazer uma confissão desavergonhada ou muito verdadeira, foi gradual, sentia uma necessidade de um exame rigoroso”.
Apesar de se basear em não ficção, o autor classifica este livro como um romance, na medida em que “abarca tudo”.
O último capítulo ilustra bem esta ideia, porque é relatado do ponto de vista de Martin Luther King.
“É baseado em muita informação real. Sei a que horas foi à varanda, o que tinha no bolso, que marca de loção de barbear usara, o que havia comido nesse dia, que gravata usava, o que eu não sabia era o que estava na sua cabeça, mas eu escrevi sob o seu ponto de vista”.
O mesmo se passou em relação a James Earl Ray, de quem sabia todos os pormenores detalhados nos relatórios do FBI, em entrevistas, testemunhos, fruto de uma investigação “muito intensa”, que lhe deu a conhecer a miséria em que cresceu, filho de pais alcoólicos, que passou fome, frio e medo, tudo isso o aproximou do assassino até à empatia.
“Senti empatia pela pobreza, pela injustiça do mundo em que havia crescido. Foi condenado a 20 anos, com outro cúmplice por roubar 200 dólares. Por menos de cem dólares tinha de pagar 20 anos de prisão, quando vês a vida dos pobres que não têm nada, quando vês o desamparo, a solidão, uma solidão que não podes imaginar, esse desamparo e solidão tão profunda, toca-te o coração”.
Não quer dizer que se compreenda, perdoe ou justifique o crime que cometeu, prossegue Muñoz Molina. Apenas tentar “perceber esse ser humano”, sobre o qual pensava muitas vezes “como seria ver através dos seus olhos, e como veria ele a Praça da Figueira”.
Lisboa entra na vida do escritor, como qualquer amor, sem uma explicação racional: “Sem esse amor a Lisboa, não teria existido o livro. Esta cidade faz parte da minha vida, e surgiu por casualidade”.
Molina conta que foi um amigo pintor que lhe falou pela primeira vez em Lisboa, que lhe “contou como era a Boca do Inferno, o elevador de Santa Justa” e que foi então que se lembrou do título “O Inverno em Lisboa” – inicialmente era “O Inverno em Florença” –, ainda antes de ter o enredo e ainda antes de conhecer a cidade, sobre a qual iria escrever.
“É uma afinidade íntima, não se explica. Há muitos sítios de que gostas, não há muitos de que te enamoras. É algo que ressoa profundamente em ti”.
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