O título já explica a conversa do SAPO On The Hop com Emicida, aquando da sua presença em Portugal para promover o lançamento do novo álbum, "Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa". Para além das perguntas sobre o disco, não havia forma de evitar de falar da luta contra o racismo e todos os problemas sociais. Mais que uma luta pessoal, uma luta que deve ser do mundo inteiro, defende o músico brasileiro.

Emicida
Emicida

SAPO On The Hop - É bom estar em Lisboa?

Emicida - Eu já me considero meio local. Conheço pouca gente, mas já me sinto mais habituado. A primeira vez que vim para a Europa, não me dei direito com os lugares por onde passei. Nem passei por Portugal. Talvez se tivesse passado por cá, a culinária iria fazer-me sentir mais abraçado pelo continente. Passei por Londres, depois fui para a Alemanha, para lugares onde não têm comparação com a comida do Brasil. Então aquilo foi um choque realmente pesado para mim. Estados Unidos também teve um choque gigantesco, mas tem um monte de porcaria e então sentimo-nos em casa. Agora, nesta outra fase, já estou mais saudável. Agora gosto de comer comida de verdade. Uma coisa que tem acontecido, e que é muito importante para mim, nos últimos anos descobri Lisboa como um ponto que me conecta com todos os outros pontos de África. Para além da minha ancestralidade, é um lugar que me conecta com a literatura desses lugares. Eu tenho livros que vêm até aqui, mas não vão até ao Brasil. Livros da lusofonia. Então, fico sempre mais ansioso por vir para Portugal. Agora como tenho um hábito de ler bastante, faço bastante pressão para dar uma corrida pelas livrarias e me atualizar.

Isso foi algo que te inspirou para este novo álbum, o explorar dessas raízes africanas.
Sim... Muito disso veio a partir de livros que encontrei aqui, comecei a aumentar o meu interesse pela literatura africana, que até então era uma coisa muito, segmentada - aliás, menos que um segmento no Brasil.

E há uma receptividade do Brasil em conhecer essa raiz africana?
Na verdade, a gente precisa trabalhar isso mais uma vez. De tempos em tempos, precisamos de trabalhar isso no Brasil. Porque o Brasil, ele é um país “assista”. A gente precisa de enfatizar a contribuição dos afro-descendentes na história do Brasil. África nos dias de hoje, politicamente, é muito importante para perceber a sua identidade.

Mas qual é relação que tem com o público de cá? Só agora nos últimos dois anos é que tens vindo a ganhar mais notoriedade cá em Portugal.
Porque todas as nossas imersões aqui em Portugal foram na cara da coragem. Muito independente, de mochila às costas, e enchendo o saco das pessoas, dizendo: “Escuta o nosso disco aí!” Foi legal fazer esse circuito independente. E agora com esta parceria entre a Laboratório Fantasma e a Sony, a gente tem a oportunidade de lançar um disco noutro país, com uma estrutura que o disco precisa. Também acho que o discurso deste disco é mais acessível do que nos outros casos. As outras imersões que tive nos outros tempos eram mais herméticas, mais pertencentes ao meu universo, que é do rap. Do rap da zona norte de São Paulo. A cultura da rima do freestyle, da cultura do improviso. Hoje, com este disco, eu acho que é um plano aberto. Vejo que as pessoas podem entrar nele, como se fosse uma carta que as pessoas possam ler e possam tomar partido. Sintam-se curiosas. E acho que plantar essa curiosidade é uma coisa muito interessante de fazer.

Emicida
Emicida

E acaba até por ser mais fácil de decifrar a mensagem? As mensagens que podes passar com o português do Brasil podem não ser entendidas pelo português.
Acho que sim. Acho que há uma facilidade, mas há um intercâmbio que faz com que a gente conheça o português do outro. O que acho que infelizmente acontece é que o Brasil envia mais que coisas que recebe, que consome no entretenimento, em relação ao português. O português tanto daqui, como de Cabo Verde, como de Angola, são coisas que ainda são caricatas no Brasil. As pessoas ainda dão risadas, e acho que a gente precisa de rever isso. São pessoas com sotaque diferente, mas o sotaque do outro é uma coisa muito curiosa e fala muito mais sobre você do que do outro.

Voltando agora para o álbum, o que é que ele acaba por significar para ti?
Primeiro, tem uma imersão humana, uma questão de ancestralidade que eu precisava tocar, urgentemente, isto tendo em conta a pessoa, o ser humano. Os livros de história não mostraram isso. O entretenimento do Brasil não faz justiça a isso, os meios de comunicação também não, e o que a cultura hip-hop ensinou a ser foi isso mesmo, a ser uma espécie de CNN das favelas. Então eu vou lá com o meu microfone que é a minha câmara e tiro esse retrato para partilhar com o mundo e para mostrar que a nossa contribuição também foi importante e definiu a cultura do Brasil. Acreditei no princípio desse projecto, que o disco seria muito sobre África. Mas acredito que depois de viajar para Angola e Cabo Verde, acabei entendendo que o disco é sobre o Brasil e por ser justamente sobre o Brasil, sobre África. A cultura africana definiu a grande maioria das coisas, principalmente fora do Brasil, daquilo que é tido como cultura do Brasil. Porém, no momento em que a cultura da pirâmide da harmonia está levantada, o topo dessa pirâmide, a possibilidade de contar a história dessa pirâmide permanece nas mãos das pessoas brancas. Então, o disco sugere um outro tipo de construção, um outro tipo de perspectiva acerca dessa mesma história, que é a história do Brasil. Nesse sentido que eu quis mesmo mergulhar esses sentidos, da raiz da cultura brasileira. Em 2015,  observado pela cabeça de um cara de 30 anos, que acabou de vir de África, que encontrou um milhão de pontos ali, que são também pontos da cultura brasileira.

O rap é cada vez mais um instrumento de intervenção? E consegues ao mesmo tempo transformá-lo num meio de comunicação para mostrar à Europa e ao Mundo o que se passa no Brasil?
Sim, acredito que a Europa também precisa conversar sobre isso. A Europa tem uma responsabilidade gigantesca no quadro social do hemisfério sul. E não dá para a gente acreditar que essa conversa precisa de começar e terminar no Brasil, e Moçambique no Uganda. Não, todos estes  países serviram durante anos, os interesses dos países da Europa, e ainda servem. E estas conversas do panorama social da América Latina e de África e do que é chamado de terceiro mundo,  é também se faz urgente aqui. Porque a bomba explode, também tem cada vez mais, de tempos em tempos, os estilhaços tem alcançado a Europa. A crise migratória é isso. Em algum momento essa bomba explode, e chega com uma intensidade maior até ao hemisfério norte. Então, acho que tem uma hora que a gente precisa de reflectir, conjuntamente, sobre o caminho que vamos ter enquanto humanidade. E este é um momento crucial.

Por curiosidade, como tens acompanhado a crise dos refugiados?
Superficialmente.

Emicida
Emicida

Como é que o público brasileiro acompanha isto? E que julgamentos fazem? É que, temos assistido nos últimos dias, parece que estamos a assistir ao regresso dos fantasmas de passado recente.
Porque foi uma porta que nunca ficou fechada. O fim da escravatura é um episódio recente na nossa história. Se nós olharmos para atrás, quando é que vemos o encerramento do trabalho de escravos da última colónia? 1900... aliás, 1888 foi o Brasil, Cuba foi dois anos antes. Tudo isto é ainda muito recente na história da humanidade. Então, não tem como a gente olhar e não acreditar. Tudo isso ainda respinga. O Brasil é uma terra de uma série de paradoxos. A questão migratória traz um paradoxo cruel do Brasil. O Brasil se choca com a imagem da criança morta na praia, só que ao mesmo tempo, o brasileiro realiza a mesma coisa com os migrantes haitianos que estão indo para o Brasil. Existe uma ignorância tão grande, que os brasileiros acreditam que o Haiti é em África. Esse paradoxo é triste, e por isso costumo bater na mesma tecla e dizer que o racismo é o principal problema do Brasil. Porque enquanto o brasileiro não reconhecer essa pluralidade e essa liberdade, essa liberdade para que você possa ser você mesmo, sem ser reprimido, então a gente não vai poder falar de buscar um país melhor, de lutar por um país melhor. Porque a gente está a fazer um país melhor para quem? Para manter essas bases, para manter essa pirâmide como ela sempre foi um ponto delicado. E eu não acredito que as conversas do racismo devam ficar unicamente entre os pretos. Muito pelo contrário, deve ser muito abrangente, e envolver todo o mundo. Assim como a conversa sobre o problemas sociais do terceiro mundo, devem alcançar a Europa.

Estamos também numa crise de informação. Para além da intolerância racial e religiosa, há uma ausência de informação, que leva a um julgamento fácil.
Sim, também. Porque você já trabalha, você já tem uma cultura de trabalhar com uma série de estereótipos, sobre o árabe, sobre o preto, sobre a religião, sobre a cultura deles. E hoje, você já tem uma imagem formada de todo um grupo étnico e aí já é fácil ter uma condenação sobre a postura dessas pessoas. Nós somos educados de uma lógica, e isso tem haver com a religião que temos. Fomos educados dentro do catolicismo, onde existe uma coisa que é que o maniqueísmo, a distinção entre o bem e o mal, a verdade e a mentira. E o mundo é muito mais que isso, muito mais complexo. E nem sempre vamos ter o extremo bem e o extremo mal. E você vai encontrar camadas. A informação que é distribuída de forma distorcida. Ela obriga, principalmente no tempo das redes sociais, que convidam você a tomar uma posição. Isso aí coloca para fora uma série de ódios que as pessoas guardam e que nos anos 90, não estavam em silêncio, mas cochichavam em casa. Elas gritam isso agora.

Isso não pode ser também um perigo? Citando Dealema, violência gera violência. Até com o que se passou esta semana, vimos o Partido Nacional Renovador a aparecer no mapa outra vez.
Mas você prefere com o diabo no escuro ou na luz? Sacou? É muito mais fácil se você vir a cara dele. A gente é romântica, mas a direita sempre esteve no poder. Os grandes pensadores todos partiram daqui e há muito tempo. Ainda assim, as estruturas alteraram-se muito pouco, se se alteraram. E o raciocínio das pessoas pende para a direita. Trabalha com medo, com a necessidade instantânea. As pessoas que vêm, vêm para roubar o emprego, e aí as pessoas estão desesperadas porque precisam para sustentar as suas famílias. Entendeu? No Brasil acontece a mesma coisa. E no Brasil ainda tem uma coisa pior, que é o bicho papão do comunismo. Toda a semana eles acreditam que vai haver uma revolução, quando o país está a biliões de anos-luz da realidade disso acontecer.

Emicida
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Agora fizeste-me lembrar da colaboração que tens no disco com o Caetano Veloso. Até que ponto ele é uma inspiração para ti? E como foi trabalhar com ele? Teve um papel importante na revolução nos anos 1960/70. Até que ponto pode influenciar os dias de hoje?
Eu acho que até os 80 e os 90. O Caetano é um artista tão intenso, ele já fazia parte da minha playlist, e de repente, quando tive oportunidade de me tornar mais próximo dele, inspirou a ser mais livre na minha música, e que seja o primeiro reflexo da minha proximidade. Trazê-lo para a música no momento de tanto ódio em São Paulo, porque São Paulo está a viver uma onda de ódio, porque sempre teve, mas isso está saindo do buraco. E há um ódio ao povo nordestino, que não tem justificação, é o povo que construiu a cidade. É um povo que tem as mãos cheias de calos justamente para construir os prédios que São Paulo gosta de ostentar. E chamar Caetano Veloso, em 2015, para cantar a Baiana, que é uma maneira de agradecer ao povo de Salvador e ao povo do nordeste inteiro. Alcança uma área de subversão. Porque baiano no Brasil, baiano e baiana, em São Paulo especialmente, é um termo pejorativo, para se referir a alguma coisa feia. A gente exalta a coisa baiana como a coisa mais bonita que se podia fazer. É um soco no conservadorismo preconceituoso.

E como foi a receptividade cá em Portugal a este álbum?
Vou-te contar uma coisa. A primeira vez que fui para os Estados Unidos, foi a primeira vez que saí do Brasil e tive um choque de cantar num contexto totalmente diferente do meu. A primeira vez que subi ao palco fiquei totalmente assustado, porque vi ali, quando caiu a ficha: “Mano, eu tou num ambiente totalmente diferente do Brasil”.  Talvez a minha metáfora e o meu jogo de palavras, esquecendo o idioma. Mesmo que eles entendam o meu idioma, o meu jogo de palavras, as metáforas, não vão fazer sentido na mesma intensidade que faço no Brasil. Então, apostei tudo na performance, para que eles com tempo, pesquisassem a informação. Na segunda, depois de ficar uns dias pela Califórnia, na apresentação, já estava mais malandro, já conseguia sacar mais da cidade. Acho que aqui é mais ou menos a mesma coisa. Aqui, consigo me conectar e comunicar com o povo português de uma maneira que me faço entender. E justamente por ter vindo algumas vezes e por ter encontrado vários pontos comuns que estão presentes, tanto na minha cultura como na cultura de Portugal.