Depois de ter publicado o romance autobiográfico “Esta noite sonhei com Brueghel”, considerado um dos mais emblemáticos da obra de Fernanda Botelho (1926–2007), a editora Abysmo publicou, um ano depois, “A gata e a fábula”, obra que tem no seu cerne a revisitação das origens, do mundo da infância das suas personagens.
As personagens deste romance representavam, na altura da sua publicação original, em 1960, uma geração que, então, se afirmava e questionava no suspenso mundo do pós-guerra português.
A história gira em torno de um grupo de mulheres pertencentes à aristocracia empobrecida, que procuram manter o estatuto através do casamento, considerando-o um fim em si mesmo, e rejeitando liminarmente uma vida independente de “solteirona”.
Tal como no restante da sua obra, Fernanda Botelho traça um retrato social da época que os seus romances representam, ao mesmo tempo em que trabalha processos narrativos, versando sobretudo o monólogo interior das personagens.
“O estilo de Fernanda Botelho pode, assim, conciliar a visão crítica e ácida do mundo seu contemporâneo com a invenção cada vez mais elaborada da polifonia mostrando, por dentro das personagens, os estilhaços e os limites do século vinte português”, explica Paula Morão na nota a esta edição.
Na sua crítica original a “A gata e a fábula”, Gaspar Simões salientou a forma como Fernanda Botelho, desde o seu primeiro livro, se apresentara “com os pés bem assentes na terra e os olhos bem abertos para uma condição social da mulher que de maneira alguma se compadece com idealizações”.
A publicação de “A gata e a fábula” sucedeu-se a “O ângulo raso” e “Calendário privado”, e os três romances, juntos, funcionam como uma espécie de tríptico ou como “tomos sucessivos dum só e longo romance em curso de publicação”, levando a que “cada um deles mereça a preferência deste ou daquele crítico responsável, na mais admirável discordância que jamais se verificou sobre uma obra”, escreveu o crítico João Pedro Andrade, citado por Marcelo G. Oliveira, autor do prefácio deste livro.
Aliás, a reação crítica aos romances de Fernanda Botelho foi sempre “plural”, refletindo o caráter inovador da sua escrita, embora sempre reconhecendo “um talento excecional no panorama da literatura portuguesa contemporânea”, acrescenta.
Essa é de resto uma das “características fundamentais” do percurso da autora: “a forma como a sua obra sempre conseguiu escapar a rótulos e a apreciações convencionais, revelando uma integridade inexcedível na sua constante e pessoalíssima busca por uma expressão justa da condição humana nesse Portugal da segunda metade do século XX”, considera Marcelo G. Oliveira.
Conjuntamente, “O ângulo raso”, “Calendário privado” e “A gata e a fábula” constituem um “ciclo romanesco”, que retrata uma certa juventude abastada do pós-guerra e desvenda progressivamente os planos sociais e as relações que integram as personagens, culminando na indagação da infância, que se encontra em “A gata e a fábula”, explica o prefácio.
A “gata” é Paula Fernanda, personagem subversiva e pouco atreita a normas que, na adolescência, se oferece a Duarte Henrique, seu amigo de infância, apenas para ser por ele recusada, vivendo depois uma existência suspensa à espera do “canto da cotovia” que a libertaria, ou seja, da sua recusa à proposta de casamento que ele acaba por lhe fazer.
No fim da história, Paula Fernanda deixa para trás o seu passado nortenho para partir com Afonso em direção a Lisboa, fechando assim o círculo iniciado em “O ângulo raso”.
Este romance granjeou à autora o Prémio Camilo Castelo Branco da Sociedade Portuguesa de Escritores - após “Léah e outras histórias”, de José Rodrigues Miguéis, e “Aparição”, de Vergílio Ferreira – num ano em que a concurso estavam também obras como “As monstruosidades vulgares”, de José Régio, “Andanças do demónio”, de Jorge de Sena, “Os desertores”, de Augusto Abelaira, ou “Ternos Guerreiros”, de Agustina Bessa-Luís.
A reedição das obras de Fernando Botelho pela Abysmo está a ser feita em paralelo com a própria organização do espólio, que está a acontecer sob a orientação do Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa e com o acompanhamento da família.
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