Colegas de profissão, mas acima de tudo grandes amigas, Carolina Deslandes e Bárbara Tinoco tinham vontade de criarem juntas um musical, “a primeira ideia” que tiveram para um projeto conjunto, contaram à Lusa, no final de um ensaio aberto à imprensa, no Teatro Maria Matos.
Inicialmente não tinham ideia para a história, só uma certeza: que o escritor Hugo Gonçalves fosse o responsável pelo texto.
Bárbara Tinoco tinha lido “Filho da Mãe”, de Hugo Gonçalves, e, conta Carolina entre risos, “obrigou toda a gente a lê-lo”, e decidiu contactá-lo.
Tendo já escrito para filmes e séries, o escritor encarou o convite para escrever um musical como um desafio. Quando o convite surgiu, tinha acabado de escrever o romance “Revolução” – editado em outubro, cuja história se desenrola na altura do 25 de Abril de 1974 – e estava, por isso, com a ‘Revolução dos Cravos’ fresca na mente.
“Tinha feito uma pesquisa enorme para o livro. Tinha a época, o espírito do tempo, o que é que estava em causa, muito presente”, contou, esclarecendo que as histórias do livro e o musical “são completamente diferentes”.
“A madrugada que eu esperava” centra-se numa “história clássica ‘boy meets girl’ [rapaz conhece rapariga], a que os escritores e os dramaturgos voltam constantemente”.
Para Hugo Gonçalves, essa história “encaixava bem na questão do espírito do tempo, porque apesar de ser uma história de amor é também uma história de afirmação da identidade de cada um deles” – Olívia e Francisco, os protagonistas.
Quando se conhecem, Francisco sonha ser comediante - “a comédia é subversiva, especialmente numa ditadura” – e Olívia, “uma mulher idealista, que quer mudar o mundo”, tem e vende livros que naquela altura eram proibidos – “algo que a poderia levar à prisão”.
Os protagonistas vivem uma história de amor proibida e, através dela, “reflete-se o espírito do tempo e mostra-se como é que era viver antes do 25 de Abril [de 1974] e também durante aquele período revolucionário, que foi um período bastante intenso”.
Carolina e Bárbara apaixonaram-se pelo texto “à primeira leitura”, depois foi só “afinar algumas coisas” e decidir onde iriam encaixar as canções, que criaram para o espetáculo e serão mais tarde editadas num álbum, que incluirá também canções que ficaram de fora.
Embora a história de amor seja o elemento central, o espetáculo “é tão mais do que isso”. “E ao mesmo tempo é tanto isso. Gosto que seja uma coisa complexa, mas que através das simplicidades e das coisas pequeninas é que fala das coisas complexas”, disse Bárbara.
Carolina acrescentou que “toda a gente acha que falar de amor é mais fácil, mas não há assunto que torne alguém tão vulnerável e tão exposto como falar de amor, e é preciso muita coragem para o fazer”.
No espetáculo, Carolina Deslandes e Bárbara Tinoco vão alternando os papéis de Olívia, a protagonista, e Clara, a sua irmã.
Hoje, por exemplo, Bárbara é Olívia e Carolina é Clara. Na quinta-feira, tal como aconteceu no ensaio aberto à imprensa, Carolina será Olívia e Bárbara será Clara.
Para as duas cantoras só fazia sentido assim.
“Viemos para esta experiência juntas, fizemos todo este caminho juntas, preparámos isto juntas e não fazia sentido de repente não vivermos as duas as mesmas coisas”, referiu Bárbara Tinoco.
Para se preparem para um musical passado na década de 1970, Carolina Deslandes, de 32 anos, e Bárbara Tinoco, de 25, além do conhecimento que já tinham da época, decidiram falar com as respetivas famílias e perceber “o que é o 25 de Abril para cada um deles”.
“Para entender melhor o que é que estas personagens estavam a sentir, tanto antes como no depois, porque o espetáculo também aborda muito a incerteza do depois do 25 de Abril [de 1974], que é uma parte de que normalmente não se fala muito”, referiu Bárbara.
Nessas conversas aperceberam-se que “havia muitas coincidências com o espetáculo”. “O avô da Carolina foi chamado no dia [25 de Abril de 1974] para invadir a PIDE [a polícia política], e o meu avô fez um espetáculo do ‘Romeu e Julieta’, em que ele era a Julieta, exatamente como na nossa peça”, contou Bárbara.
Também o ator e músico Diogo Branco, de 34 anos, o Francisco do musical, contou com a família para entrar no papel: “a minha vida toda vivi um bocadinho dentro deste contexto”.
Diogo é neto do músico e compositor José Mário Branco, que morreu em 2019, uma das figuras mais destacadas da chamada ‘música de intervenção’ e que esteve exilado em Paris durante o Estado Novo.
Além disso, fez pesquisas sobre a época, “para relembrar algumas coisas que podiam estar mais longe da memória, e tentar fazer jus à poesia do texto e das canções”.
Para o ator, que é também músico, “há sempre uma responsabilidade acrescida” quando se aborda o 25 de Abril de 1974, “um tema tão crucial” na História de Portugal, e quando se fala de Liberdade, “e da possível perda dela”.
“Apesar de ser uma peça que queremos que seja de entretenimento, queremos que passe uma mensagem importante da luta pela liberdade e de evitar que ela se perca”, disse.
Do elenco da peça fazem ainda parte Brienne Keller, Dinarte Branco, JP Costa, João Maria Pinto, Jorge Mourato, José Lobo, Maria Henrique, Mariana Lencastre e os músicos Feodor Bivol, Luís Delgado, Marco Pombinho, Miguel Casais, Rui Pedro Pity e Sandra Martins, que estão em palco a tocar ao vivo durante o espetáculo.
Em “A madrugada que eu esperava”, a história desenrola-se sobretudo entre 1971 e 1975, mas no final o tempo salta para 2024, o ano em que se comemoram 50 anos da ‘revolução dos cravos’.
Fica a saber-se para onde a vida levou Olívia e Francisco e é desta parte do espetáculo que Hugo Gonçalves e Bárbara Tinoco destacam uma frase dita pela protagonista: “o direito da Liberdade implica o dever da memória”.
“Quando esquecemos o passado arriscamos a repetir esses erros no presente. Se pudermos lembrar, de alguma forma, como era viver antes da revolução e como era o país, além do entretenimento que estamos a dar às pessoas, estamos a fazer um bom trabalho”, referiu o autor do texto.
Bárbara Tinoco considera que este musical “é o dever da memória, que explica o direito à liberdade”.
“É um espetáculo familiar, em que os mais velhos se podem emocionar, e os mais novos podem perceber a importância de votar, a importância de terem interesse nos assuntos políticos do país”, disse, lembrando que ela e Carolina, como tantos outros jovens, já cresceram sem questionar a liberdade.
A cantora reforça que os protagonistas da peça “não tinham liberdade e estão o tempo todo a pensar como vão chegar a ela”. “A Olívia estava empenhada em que toda a gente pudesse ter liberdade. Hoje em dia, 50 anos depois, é importante gritar ‘Fascismo nunca mais!’ e isso dá que pensar”, referiu.
Carolina Deslandes lembra que “se não tivesse havido 25 de Abril esta peça não existia”, que provavelmente não podia dizer as coisas que diz (a cantora já assumiu publicamente posições sobre temas como os direitos das mulheres, o racismo ou a habitação), e que Bárbara Tinoco “não podia ter uma canção como ‘Despedida de Solteira’, por exemplo”, ou as duas não poderiam apresentar-se em palco da maneira que entendem.
“Foi preciso gente lutar e sacrificar-se para que pudéssemos estar aqui hoje, e isso não pode nunca ser tido como uma coisa entre os milhares de coisas que acontecem no dia-a-dia. Este foi o grande acontecimento que mudou a história do nosso país, e eu não gostava nada de vê-lo a [ter que] acontecer outra vez”, disse Carolina Deslandes.
Diogo Branco admite haver, em Portugal e no mundo, coisas que “estão efetivamente mal e têm de ser resolvidas”, mas “nada se resolve a perder liberdade, nada se resolve com uma ditadura”.
“A madrugada que eu esperava”, com encenação de Ricardo da Rocha, estará em cena no Teatro Maria Matos até 28 de abril, para lembrar ou mostrar a quem não sabe, como se vivia em ditadura.
O musical será depois apresentado no Porto, a 30 e 31 de maio no Coliseu.
“A madrugada que eu esperava” – verso extraído de um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen e que dá nome a uma das canções do musical - é uma coprodução entre a Força de Produção e a Primeira Linha.
Os bilhetes para o espetáculo custam entre os 20 e os 25 euros para Lisboa, e os 15 e os 35 euros para o Porto.
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