O deserto no qual Sean Riley - com um ar de Tom Waits desgrenhado -e cavaleiros montaram acampamento está longe de poder ser associado a secura. Nele foram erigidas igrejas gospel onde acontecem milagres, abertos saloons onde a festa é de arromba, marcados duelos ao pôr do sol e tocada música para saltar fogueiras em dias de chuva.
“It´s Been a Long Night”, disco editado este ano e que serviu como oásis principal na noite de ontem, mostra que o sonho americano continua bem vivo, e que será uma questão de tempo até que Sean Riley e os seus Slowriders, todos músicos de eleição, tomem conta de muitos dos desertos deste planeta.
Agora a parte complicada. Tentar descrever a atuação de Howe Gelb, ontem à noite, no Sintra Misty, é como querer explicar, em poucas palavras, o funcionamento de um reator nuclear; ou como se deve desmantelar uma bomba só com uma mão e tendo de recorrer à ajuda de uma tesoura: Concerto em progresso? Momento de “stand up comedy”? Um misto de teatro, farsa e tragédia?
O início mostrou que estava para chegar algo desconcertante. Por detrás da cortina ouviam-se risos escarninhos, estalos de língua e pedaços de acordes que faziam pensar em atos de feitiçaria. A cortina sobe e mostra Howe Gelb com um casaco preto coçado, calças de ganga já com a sua conta e um chapéu de feltro a fazer lembrar Philip Marlowe e que serviria, explicaria mais tarde, para o proteger da luz que inundava o palco - mais tarde pediu a “luz azul” para tocar um tema ao piano sem o chapéu.
Este é um artista para quem a música é vista como uma permanente erosão - “A erosão é a melhor amiga do coveiro -, que inventa pelo menos um tema por dia e para quem há músicas que foram escritas apenas para serem tocadas uma vez – ou para serem tocadas sempre de forma diferente. A sua forma de tocar guitarra édesconcertante, viajando entre o acústico solarengo e uma electricidade cáustica - como em temas como “Shivers” ou “Paradise Home Abouts”; a sua forma de cantar é a de um crooner com ar de pacifista, contando histórias quase sempre desafiantes sobre a vida, entoando canções de embalar para uma geraçao pouco satisfeita com a vida.
Será um concerto que entrará na história do Sintra Misty como aquele que motivou o maior número de abandonos, e a que Gelb fez uma sarcástica alusão quando, a certa altura, as luzes se acenderam revelando uma debandada massiva: "Estes vão apanhar o último comboio. Acontece o mesmo em todo o lado”.
Houve canções sobre essa coisa estranha do amor - uma ela, um ele e as ramificações do amor -, conselhos sobre como lidar com um futuro difícil- “Não devemos insultar o futuro fazendo planos” -, música para celebrar o fim do mundo - “Aparentemente enganaram-se. Vai ser daqui a uma semana: 28 de outubro” - e até um relato do Halloween americano - “Os miúdos vestem-se terrivelmente mal, talvez para revelarem a sua verdadeira alma. E nós recompensamo-los pela sua honestidade”.
Ainda fomos prendados com um estranho momento de marketing, em que Gelb pegou num saco preto - poderia ser um saco de pão - e foi retirando diversos CD´s , acrescentando uma pequena descrição - “Este é um óptimo CD para a hora de ponta. É capaz de vos dar jeito, vi o que acontece entre Lisboa e Sintra por volta das sete da tarde”. O negócio funcionava desta forma: “Cada CD custa 9.99. Tiram o CD que querem e deixam 10 euros. Um cêntimo fica para a taxa de carbono. Celebremos a nova ordem do mundo. Bancos nunca mais”.
Antes de sair de cena, pensando na cerveja com que se iria deliciar no bar mais próximo, perguntou o que podia fazer por cada um. A resposta foi dada com um “Happy Birthday” cantado em coro, já que, quando o relógio havia oferecido as doze badaladas surdas, Gelb tinha virado a página dos 54 para os 55 anos.
O músico foi-se embora, o saco ficou e os fiéis trocaram-nos por notas de 10 euros. Celebrou-se a diferença, a excentricidade e, acima de tudo, uma forma singular de estar na música e no mundo. E os comboios que nunca têm de partir.
Texto: Pedro Miguel Silva
Fotografias: Nuno Moreira
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