“É sempre bom voltar a casa” - foi com este “beijinho comum”, na impossibilidade de se dirigir individualmente a cada um dos muitos que se encontravam frente ao Palco Primavera, e que nos pareceram muitos mais que no dia anterior à mesma hora, que Hélio Morais, spokesman dos Linda Martini, se dirigiu aos primeiros festivaleiros de sábado.

Amor Combate facilmente ganhou coro, logo aos primeiros versos, como se de uma constatação múltipla se tratasse, prosseguindo em força, dentro e fora do palco, para uma catarse de guitarra partida. Antes mesmo, o elogio ao espaço, que consta suplantar em beleza o originário, lá para os lados de Barcelona, e o apelo à conservação - “O Porto tem um jardim do caralho! Baza lá conservar isto”. Com dedicatória a Fernando Lopes, seguiu-se Belarmino, a dar lugar à conclusiva Cem Metros Sereia, e a viagens crowd surfing quase até às toalhas axadrezadas postadas no relvado, de quem preferiu ver o concerto lá de trás.

Coube a We Trust, projeto colaborativo encabeçado por André Tentugal, fazer a estreia diária no Palco Optimus. Sob o repto da leveza e da frescura pode dizer-se, resumidamente, que o pop veraneante do ano passado continua bom de saúde, e recomenda-se. Apesar da alta rotação de Time (Better Not Stop), mesmo antes do lançamento de “These New Countries”, este parece continuar a ser o tema mais aguardado e melhor recebido.

Ontem e hoje são dias de hipóteses redobradas, a ditarem a confusão nas escolhas difíceis ou na boa vontade que é tentar ver de tudo um pouco. Em simultâneo à entrada em cena dos Linda Martini, a imensa tenda apelidada de Palco Club (ou Palco 4, como está escrito nos horários distribuídos), foi inaugurada ao pelo espanhol Esperit!.

Ao free folk de Mau Boada, seguiu-se o folk mais composto, mais dramático, com orquestrações revestidas a harmónio e violoncelo, dos Other Lives. O destaque recaiu para For 12, do mais recente “Tammer Animals”.

Ainda a bordo da orientação folk com que se iniciou a tarde, no mesmo horário do concerto dos Other Lives, os Tall Firs – “se soubéssemos que um dia viríamos tocar a Portugal, teríamos escolhido um nome mais fácil, como Tennis”, brincaram – estrearam a programação comissariada pelo festival All Tomorrow's Parties (Palco ATP). Um espetáculo para gente sentada, que se foi desenrolando em modo corrosivo e entremeado por comentários mordazes - “parece que gostaram mais da canção do que eu gostei sobre a rapariga sobre quem a escrevi”.

De volta ao Palco Primavera, com a plena consciência de que tocar num auditório pomposo em muito difere do que tocar no palco de um festival, os Yo La Tengo deram um concerto que começou logo por uma vertente mais crua, de guitarras arranhadas a repercutirem-se recinto fora, em Deeper Into Movies, mas onde também houve espaço algumas canções pop, de que são exemplo Mr. Tough e Nothing to Hyde, dos dois últimos álbuns lançados pelo trio de Nova Jérsia.
Com a aproximação dos horários das atuações dos War On Drugs, que se despediram do público com um otimamente pronunciado "até à próxima", e dos solarengos Tennis, registou-se a debandada dos fãs menos acérrimos, curiosos com estes nomes menos frequentes em solo nacional.

“Que pôr-do-sol tão bonito, deve ficar-me mesmo bem” - com os habituais tiques bem-humorados de prima donna, Rufus Wainwright, já tão pouco estranho dos palcos portugueses, subiu ao plateau para um admirável concerto.

Depois de ter andado a galar surfistas num passeio pela praia, o filho de Loudon Wainright III, de quem nos trouxe a belíssima One Man Guy (“vim de uma família de músicos folk, por isso pelo menos uma canção folk tenho de vos tocar – folk off!”), passeou-nos pelo ecletismo da sua variada discografia, embora tenham sido os momentos ao piano a arrebatarem os corações mais céticos: a solo, a primeira grande conquista deu-se com The Art Teacher, simplesmente arrepiante; Montauk, escrita para a filha Viva, emotivamente interpretada de olhos fechados, poucos terá deixado indiferentes; Hallelujah, porque fica sempre bem e “não faço isto muitas vezes, mas vocês merecem”.

Enquanto as atenções se repartiram, nos dois palcos secundários, entre Chairlift e Rafael Toral, muitos foram guardando lugar para os senhores que se seguiram, frente ao Palco Primavera: os Flaming Lips.

O aparato cénico de figurantes a animarem as laterais do palco, bola de espelhos gigante, fitas penduradas bamboleantes ao vento, confetis, etc., não foi novidade, não só para quem já teve o prazer de ver os Flaming Lips ao vivo, mas porque muito dificilmente estas coisas ficam em segredo. Muito menos terá surpreendido o passeio pelas cabeça da audiência de Wayne Coyne, cuja missão fora facilitada pela imensa bolha transparente onde se encontrava, mas que há de ter funcionado como o melhor chamariz a quem procura atuações espetaculares onde a música, que tanto vale por si, torna-se fortemente complementada.

O remate, por entre os excessivos galanteios ao público e inúmeras declarações de amor, foi dado por Do You Realize, numa constatação agridoce do fim.

Os Wilco tiveram o bom senso de encruzilharem o repertório mais rockeiro com a baladinha pop, mais desrespeitada pelas conversas irresistíveis de quem deve ter muito para comentar, ao segundo dia de festival, apesar dos “shhhhs” que lá foram soando, por exemplo, ao início de Al Least That's What You Said.

O contágio do público, crescente frente ao Palco Optimus a partir das 23:15 de sexta-feira, fez-se não só pelos temas contemplados, mas pelo imenso divertimento adivinhado em cima do palco, espelhado pelos sorrisos trocados entre os elementos da banda e pelos arranjos aumentados em tonalidades mais distorcidas, das quais nem as canções mais calmas escaparam. Que o diga a versão ruidosa de I'm The Man Who Loves You, introduzida pelas baquetas empunhadas do baterista e Dawned On Me, porque há uma guitarra dupla com obrigatoriedade em ser usada.

Jesus, etc., de “Yankee Hotel Foxtrot”, soube prémio final de bom comportamento, e assim se despediram os muitos agradecidos Wilco. Em jeito de trocadilho, da boca de um grupo de espanhóis animados, a resposta não se fez tardar: “you're welcome”!

Entretanto, no Palco Club, o protagonismo era dos outros Lips, os Black Lips, cuja visceralidade, levada demasiado à letra, ontem particularmente com vomitado à mistura, não há de ter defraudado ninguém.

No Palco ATP, o tempo de antena quase que fora, na totalidade, dos Codeine, embora os Flaming Lips, que se fizeram ouvir ora nos intervalos entre as canções, ora nas partes mais silenciosas que compunham as mesmas, tivessem dado demasiados ares da sua graça em festa alheia. Um pormenor que não pareceu incomodar quem fosse, e que até levou ao gracejo do tímido Stephen Immerwhar, a quem já não sobrava muito mais a agradecer (afinal “obrigado é uma palavra tão bonita para 'thank you'”), e que decidiu fazê-lo, também, aos amigos Flaming Lips.

Estes pioneiros do slowcore, provenientes de Nova Iorque, deram uma atuação no mesmo tom, em que cada tema fora retornado com demorados aplausos, que pareceram deixar a banda surpreendida e algo embaraçada com recepção tão calorosa.

Pea, que entretanto havia sido já gritada e pedida, à semelhança do que acontecera nesta passada edição do Primavera de Barcelona, fechou o concerto. Sem a dissonância da banda de Wayne Coyne a atrapalhar a cantoria – ou os Flaming Lips terminaram um pouco mais cedo ou nos deixamos esquecer que existem - , o público frente ao ATP, onde se contavam mais estrangeiros que portugueses, decidiu, por bem, juntar-se à mesma.

Finda a atuação dos Wilco, que se sobrepôs às dos Shellac e dos Neon Indian, surge novo dilema proposto esta noite pela organização: dos três concertos a ocorrem simultaneamente, qual escolher? The Waklmen? Beach House? The Wolves in Throne Room?

Os últimos, mais desconhecidos entre o público, contaram com a menor afluência, sendo que para muitos, a verdadeira questão, centrou-se entre os dois primeiros nomes.

A tenda Palco Club, como seria de prever, não bastou para albergar todos os que lá se deslocaram, tendo os Beach House como primeira escolha. Num mundo ideal, ou como quem diz, num cartaz ideal, o lugar de Victoria Legrand e Alex Scally teria pertencido a um palco de dimensões superiores.

Por mais excecionais que sejam em disco (e já lá vão quatro a prová-lo!), há uma qualquer intensidade que ainda lhes falta saber transportar para palco, por maior ou mais intimista que seja o espaço em que atuem. Algo que, infelizmente, e apesar da reverência mais cega, se voltou a confirmar esta noite.

Metros abaixo, no fundo do declive onde se encontra instalado o Palco Primavera, os Walkmen estrearam-se em modo acústico, com We Can't Be Beat. Os restantes temas foram-se desnovelando, até à catarse aguardada, com The Rat, anunciada como uma das mais antigas e onde as vozes do público, que entretanto já se haviam feito ouvir, aumentaram em número, volume e vontade.

A caminhar para a madrugada de sábado, regressados de uma galáxia muito peculiar, os M83 chegaram com vontade de fazer a festa. Em tudo muito similares à última passagem por terras lusitanas, que na altura lhes valeu o epíteto precoce de melhor concerto do ano, facilmente souberam cativar a assistência, com um espetáculo visual de psicadelismo estelar e muita euforia.

Dono de uma genica a puxar para o hipnótico, o jovem Jordan Lawlor tem vindo a afirmar-se como peça essencial no jogo de celebração musical levado a cabo pelos M83.

O Primavera Sound prossegue por mais dois dias. Hoje não há Björk e Santiago de Compostela não nos serve de consolo.
O que vale, é que o desafio costuma ser fácil para os Kings Of Convenience...

Texto: Ariana Ferreira
Fotografias: Filipa Oliveira