Palco Principal – Chegou recentemente ao mercado discográfico uma nova mixtape dos Orelha Negra. O que nos traz a “Mixtape II”, além de novas roupagens para os temas do vosso último disco?

Fred – Temos um pouco de tudo. Temos músicas que estão iguais ao disco, cantadas por pessoas que convidámos; temos temas em que a pessoa responsável pela remistura teve a liberdade de fazer o que quis e temos, inclusive, uma música exclusiva da mixtape – a Queen of Hearts.

PP – No cardápio de convidados da vossa mixtape cruzam-se universos bastante diversos. Têm a Mónica Ferraz, o Valete, a Kika Santos, DaChick, Osso Vaidoso, Carlos Nobre… Que critério vos conduziu a estas escolhas?

Francisco Rebelo – Não tivemos um critério rigoroso. Normalmente, quando partimos para estas aventuras de mixtapes, vamos selecionando alguns artistas que gostamos ou pessoas cujo trabalho nos diz algo, pessoas que nos influenciaram em alguma coisa… E vamos pedindo o seu contributo – alguns são contributos vocais. Essas pessoas ouvem o disco, escolhem uma música, sentem que essa música pode ser delas. É um trabalho que parte duma base musical nossa, mas que é composto por uma série de artistas que nele participam. Esse é o grande desafio de fazer uma mixtape: é sentires que as tuas músicas ganham uma nova roupagem, ou por acrescentos vocais, ou por remisturas e versões.

Fred – O tema do Sam The Kid e do Regula, por exemplo, é quase um tema novo, porque foi cantado sobre uma música remisturada…

PP – Amp Fiddler é um dos nomes internacionais que milita esta nova mixtape. Como surgiu o convite ao artista?

Fred – Nós começámos a pensar na mixtape quando o último disco saiu, por isso fomos falando e fazendo as coisas com calma. A certa altura, chegámos à conclusão que gostávamos de ter na mixtape a participação de algum pessoal estrangeiro, e fomos tentando contactar esse pessoal. Houve pessoas com quem nós falámos que não tiveram disponibilidade de agenda para o fazer. O contacto com o Amp Fiddler surgiu via Internet: enviámos a música, ele curtiu e participou.

Francisco Rebelo – Não o conhecemos pessoalmente. Enviámos as músicas, eles gravaram lá e reenviaram-nas para nós misturarmos. Com os artistas estrangeiros foi quase tudo assim, à exceção do tema do Ezekiel, que foi uma remistura. Nesse caso, ele mandou o material já todo pronto.

Fred – Escrevemos um mail a explicar quem éramos, juntámos alguns vídeos que tínhamos feito e explicámos qual era o nosso conceito para esta mixtape. Dissemos que gostaríamos de ter o seu contributo vocal, ele ouviu, gostou e tivemos a sorte de aceitar a parceria.

PP – Já tivemos a oportunidade de assistir ao videoclip do tema Queen of Hearts, querevela a dança sensual de uma bailarina…

Fred – O vídeo não conta uma história muito poética ou intelectual, não passa propriamente uma mensagem. Nós tínhamos essa música e falámos com uma amiga nossa – a Rita Lino – e pedimos-lhe que fizesse alguma coisa com sensualidade, mas não uma sensualidade gratuita. Então surgiu a ideia dessa rapariga a dançar. Tal como os cantores convidados tiveram carta verde para fazer o que quisessem, a Rita também teve. Nós sabíamos o que ia aparecer, mas o vídeo é dela. Não houve, da nossa parte, grande escolha ou direção de vídeo, ao contrário do que aconteceu nos anteriores.

PP –Mas aescolha do primeiro single da mixtape recaiu em Heartbreaker, da Mónica Ferraz…

Fred – …que é uma versão do tema Throwback, que já foi o nosso primeiro single no disco anterior. No entanto, esse será o single que apresenta a mixtape. O single oficial será o Solteiro, do Sam The Kid e do Regula, que contará também com um vídeo idealizado pelo Carlos Afonso e pelo João Pedro, que participam em grande parte dos nossos vídeos.

PP – É comum apresentarem nos vossos concertos vários medleys, que viajam temporalmente através de vários estilos e épocas musicais. Fizeram-no, inclusive, nos espetáculos do passado fim de semana, em Lisboa e Porto. Qual a importância desta componente nas vossas atuações ao vivo?

Francisco Rebelo – Esses medleys funcionam para nós como homenagens – homenagens a grupos que influenciam o nosso trabalho e que são referências para nós. Iremos, claro, sempre atualizando a nossa carteira. Aliás, temos feito isso desde o início, há sempre razões fortes para o fazermos. A primeira vez que fomos ao Sudoeste criámos uns medleys especiais e quando fomos ao Alive também. Há sempre momentos ao longo das digressões em que o fazemos, ou pela importância dos eventos, ou pela temática dos mesmos, que nos provoca, eventualmente,tais desafios. Ao longo deste ano vamos apresentar uns novos, porque é algo que faz parte da nossa identidade. É como fazer uma revisão à matéria…

Fred – Ao contrário do que possa parecer, os medleys são processos complexos de criação – daí não podermos estar sempre a mudar. É um trabalho que exige grande pesquisa da parte do Samuel [Sam The Kid] e do Cruz [DJ Cruzfader] por causa dos samples que são usados, e depois um grande trabalho da banda toda, que tem que pôr tudo direito. É algo complexo. De repente, dás por ti a tocar sete músicas em seis minutos – a cabeça tem que estar formatada. Mas é algo que nos dá muito gozo também. O grau de execução nesses medleys é, para mim, elevado. E acho que para eles também…

PP – Foram recentemente confirmados para o festival Meo Sudoeste. Em que outros festivais ou palcos vamos poder encontrar os Orelha Negra?

Fred – No circuito dos festivais de verão, optámos, este ano, por fazer o festival Sudoeste, que será o nosso grande concerto de festival. Estamos a preparar um concerto diferente, especial. Provavelmente, não nos irão ver em mais nenhum dos grandes festivais em Portugal.

Francisco Rebelo – Entretanto, vamos ao festival Europa Vox, em França, agora em maio. Somos mais um dos representantes portugueses no festival. E vamos ao Rio de Janeiro em setembro, ao Rock in Rio.

PP – Cada vez mais, as bandas portuguesas têm a oportunidade de apresentar o seu trabalho além-fronteiras e os Orelha Negra são um belo exemplo disso mesmo. Na vossa opinião, o que tem motivado essa procura, essa expansão?

Fred – Acho que a música caminha, cada vez mais, para não ser música portuguesa ou espanhola, ou inglesa… A globalização e a Internet fizeram essa distância estar apenas condicionada pelo dinheiro que tens para investir em ir para fora, pela gestão financeira que cada banda faz, pelo esforço coletivo. Ainda há dias saiu o disco dos Deolinda e eu ouvi uma entrevista deles na rádio. Eles também têm feito um grande trabalho lá fora. Nós, como eles e como as outras bandas todas, tentamos ir lá fora e fazer alguma coisa. A música portuguesa está numa fase boa, como sempre esteve, aliás. Não foi só este ano que começaram a aparecer novas bandas. Sempre houve muitas bandas em Portugal: umas boas, que ficaram conhecidas; outras igualmente boas, mas que não tiveram essa sorte. Acho que, neste momento, está tudo a trabalhar e a tentar ultrapassar esta má fase que se vive em Portugal. Se olhássemos para o panorama musical atual, não diríamos que o nosso país está em crise – antes pelo contrário.

Francisco Rebelo – O país não está em crise criativa. Há muitas coisas a aparecerem, muito trabalho emergente, muita gente a compor e a criar. Como o Fred estava a dizer, o acesso à Internet e à tecnologia permite que as bandas se libertem um pouco do velho esquema que já está decadente: o negócio editorial, os contratos com as editoras. Cada vez mais, as bandas são donas de si próprias e produzem os seus trabalhos com os seus próprios meios. Divulgam-se via Internet e a distribuição física… Bem, não diria que fica desprezada, mas passa para segundo plano, até porque a edição física ainda tem algum peso para uma banda portuguesa que queira ter alguma projeção lá fora. No nosso caso, isso tem sido, aliás, um grande entrave à coisa. Falta-nos uma editora que nos suporte lá fora. Estamos na cauda da Europa e, logisticamente, é muito complicado sair. Temos que atravessar a Europa toda com a tralha às costas, o que é extremamente difícil , comparativamente ao que acontece com outras bandas europeias. Sendo uma banda alemã, é muito mais fácil fazeres uma digressão na Áustria, Suíça, França, Itália, etc. Para nós, é sempre um pesadelo orçamental sair com uma equipa, por mais pequena que esta seja. É algo que temos que pesar muito bem, visto os cachês não terem evoluído muito em 20 anos. Lembro-me, por exemplo, da primeira digressão que fiz com os Cool Hipnoise, em 1998, na Europa. Os cachês, hoje em dia, andam pelos menos valores, só que os custos da deslocação são maiores. Há muita coisa a tocar lá fora, mas convém não baralhar ou passar a ilusão que está tudo muito bem, porque não está. É com grande esforço e sacrifício que as bandas portuguesas tocam lá fora.

PP – Num debate sobre hip hop que tive oportunidade de assistir teorizava-se sobre o facto do sucesso dos Orelha Negra se basear no não comprometimento com uma voz. Concordam com essa teoria?

Francisco Rebelo – Sempre nos predispusemos a não ter voz. A voz preenche, no hip hop e não só, um grande espaço das músicas. Um dos grandes desafios dos Orelha Negra tem sido, exatamente, fazer as coisas sem esse espaço – e é isso que tem marcado a diferença.

Fred – Desde o primeiro dia que fazemos isto para nos divertirmos e, claro, com o objetivo de chegarmos ao máximo de pessoas possível. Nunca fizemos as coisas a pensar se iríamos ter mais sucesso com vocalista ou sem vocalista. Agora, estamos muito bem assim, o que não significa que não venha a acontecer convidarmos alguém para cantar no nosso disco caso nos apeteça. Curiosamente, no início da banda, tivemos algumas recusas, precisamente por o nosso trabalho ser meramente instrumental e muito específico.

Francisco Rebelo – E, mesmo agora, antes de sair o segundo disco, muita gente perguntava se não íamos colocar cantores nas músicas…

Fred – E ainda hoje, ao vivo, há quem nos diga que o nosso show é bom, mas que ganharia com a inclusão de um cantor para puxar pelo público, etc. Nós sobrevivemos assim há quatro anos, a fazermos as coisas à nossa maneira. No fundo, temos vários cantores: o Cruzfader, por exemplo, é um cantor, porque faz ali uma grande parte da interação com o público. Não temos propriamente um host em palco, que puxa pelas pessoas, preferimos fazer as coisas de outra forma – uma outra leitura.

Francisco Rebelo – É importante que as pessoas percebam: nós somos todos músicos e temos outros projetos que têm cantores, portanto, aqui, o desafio é mesmo sobreviver instrumentalmente – a música pela música – e deixar na cabeça das pessoas a imagem que quiserem criar quando a ouvem. Quando fizemos o primeiro disco, não tínhamos sequer a ideia de que alguma vez pudéssemos vir a tocar em espaços gigantes como os festivais. Para nós, foi uma grande surpresa. Uma cena de música instrumental requer, normalmente, alguma atenção, um espaço mais intimista e nós tínhamos pensado a coisa para tocar em clubes e espaços do género. Mas, curiosamente, a cena acabou por se tornar abrangente e eu acho que tem um pouco a ver com isso: muitas pessoas que não estão diretamente ligadas ao hip hop vêem-se musicalmente em muitos temas nossos. Há muitas referências neles.

Fred – Numa mixtape, como esta segunda, consegues ter a Ana Deus a cantar uma música e o Valete a cantar outra. Não estamos, portanto, ligados só a uma coisa ou a um estilo. O facto de não termos cantor tem essa vantagem. Não estamos a compor só para que o suposto vocalista esteja no seu universo, para que possa interpretar aquilo à sua maneira.

PP – O vosso processo de criação é dividido por igual entre todos, ou existem alguns elementos que assumem papéis fundamentais na composição?

Fred – O Samuel é uma pessoa que tem uma participação enorme, porque é ele que traz a parte samplada que muitas vezes serve de base. Às vezes é o Francisco que traz umas malhas, ou é o Cruz que traz outras, ou eu, tanto faz… Muitas coisas surgem do lado do sample, porque dali pode sair uma música, porque aquilo pode ser um ponto de partida para a composição. Mas o nosso processo de criação é uma coisa totalmente democrática: sentamo-nos no estúdio e ficamos meses a tocar e a inventar. O processo deste último álbum, por exemplo, foi um pouco como o do anterior, em que marcámos uma espécie de jam sessions, simplesmente para tocar. Depois ouvimos as gravações, cortámos as partes que nos interessavam e começámos a desenvolver as músicas. E muito do disco veio, por exemplo, de um sample que o Sam trouxe, ou que o Cruz trouxe, ou até duma simples linha de baixo. Por exemplo, a Memória foi uma malha que o João Gomes trouxe, através da qual criámos um tema. Há um caso de uma versão que fizemos, no primeiro álbum, de uma música chamada Saudade, do Marcelo Camelo. Eu tinha mostrado a música à malta, porque a achava bonita e queria que tentássemos fazer alguma coisa dela. Andámos montes de tempo naquilo e, entre algumas alterações no ritmo e na velocidade, foi acrescentada uma distorção, transformando-se, aos poucos, naquela que é hoje a Cura.

Francisco Rebelo – E nesse mesmo dia em que acabámos a Cura deixámos lá um excerto, assim meio jam session, que ficou guardado na gaveta. Num outro dia, aqui no estúdio, já na fase de produção do disco, pegámos nesse mesmo excerto e fizemos a nossa verdadeira Saudade, com outra ideia mais marada, com quatro baixos e uma coisas assim meias esquisitas. Não há regras e há também muito espaço para experiências de produção. Aqui, como não sou guitarrista (apesar de tocar guitarra), há esse espaço para gerir: posso inventar coisas que não obedeçam à linguagem dos guitarristas, posso fazer o que me apetecer.

Fred – Tentamos sempre desafiar-nos a nós próprios, fazer coisas novas, não cair na tentação de nos repetirmos ou de cedermos à facilidade. Por exemplo, na composição do último álbum havia ali uma ou duas músicas que puxavam aquela balada à imagem de uma M.I.R.I.A.M., e nós evitámos um pouco esse facilitismo. Em termos de composição, tentamos ser livres e não ter uma ideia pré-formatada. Se, na altura, um de nós tiver a ouvir um disco do António Zambujo ou dos Deolinda, é normal que alguma da composição venha com influências deles.

Francisco Rebelo – Há outra coisa engraçada, que tem a ver um pouco com a nossa experiência como músicos, que é a maneira como nós conseguimos adaptar a nossa forma de tocar à linguagem do sample. Muitas vezes fazemos nós os nossos próprios loops. Acho que isso é um pouco o que nos distingue. Por isso é que não há muitas bandas a tocarem hip hop, porque há muitos produtores de hip hop que acham que os músicos não têm a linguagem que se usa numa MPC. E nós, por experiência, por ouvirmos muita música e por trabalharmos com esta estética há muito tempo, conseguimos vencer esse desafio. Quando nós arrancámos com os Orelha Negra, uma das grandes dúvidas era como é que iríamos conseguir fazer a banda soar bem, contextualizada dentro da imagem sónica que os samples e o djing têm. São amostras que viajaram desde os anos 50 até aos dias de hoje, por exemplo. E conseguir por a banda dentro dessa sonoridade é complicado. São precisos muitos anos a ouvir discos, a ver concertos, a ouvir álbuns de outras bandas.

Manuel Rodrigues