As vibrações dos muitos ingleses que ontem invadiram Algés eram tão intensas que o habitual cinzentismo britânico tomou conta dos céus de Lisboa, deixando no ar a ideia de que seria necessário ligar a Noé para ter direito a uma boleia na arca salvadora para fugir a um dilúvio. Ficaram as ameaças, alguns pingos e um primeiro dia que, em matéria de concertos, passou à tangente.

Couberam aos The Royal Blasphemy, como banda vencedora do Concurso de Música Moderna de Oeiras, as honras de abrir o Palco Heineken. Com um vocalista aparentado a um GI Joe ao comando de um grupo armado, foram soltando blasfémias, atirando garrafas e soltando algumas tiradas políticas, principalmente para as filas da frente onde se encontrava a sua fanzone. Rock metal, com carimbo nacional, a que os aficcionados do estilo devem ficar de olho.

“Nós somos os Parkinsons! Ainda se lembram de nós?” Foi assim que Afonso Pinto, vocalista da mítica banda punk de Coimbra, se apresentou ao público do Optimus Alive, neste primeiro dia da sexta edição do festival. Não muitos, será talvez a resposta mais correta, que mais tarde se veio a confirmar pela ausência de mãos do ar de quem marcou presença frente ao palco Heineken, ao início da tarde, perante nova questão, num repto para recordar Primitive: “quem se lembra do primeiro disco?”.

Nada disto pareceu ensombrar o regresso dos Parkinsons que, com um novo trabalho na calha (“Back to Life”), com lançamento apontado para Setembro, entremearam clássicos do seu reportório contestatário com algumas novidades, de que são exemplo Good Reality e Little Toys. Por entre as intervenções divertidas e provocatórias do vocalista, houve ainda margem para ceder a paisagens menos agressivas, com Nothing To Loose, apresentada como “a baladinha”, porque “somos punks mas somos românticos”.

Com uma vontade notória em direcionarem as atenções para o futuro álbum, os Parkinsons despediram-se com I’m So Lonely, e um intrigante desaparecimento de palco do vocalista, num mistério que se veio a resolver e justificar mais tarde quando o músico reapareceu com uma lata de cerveja na mão.

Aterrar no Palco Optimus às 18h30 e tratar toda a gente por “tu”, com uma atitude desafiadora que promete retaliação em caso de ser mostrado pouco afecto, não é missão para qualquer um. Danko Jones e parceiros de crime abriram o programa com riffs incendiários, incitamentos ao coro colectivo e um sentido de humor refinado que conquistou muitos dos que assistiam ao concerto.

Danko Jones revelou-se um verdadeiro one man show: mandou trazer de volta os fotógrafos quando estes saiam após as três músicas da praxe – com a promessa de que faria gastar todas as suas baterias -, mostrou alguns dos dotes da sua língua gigantesca e, como bom gestor de carreira, aproveitou para meter a cunha para que estivessem presentes na edição de 2013. Com a energia sempre no máximo e um sentido espírito de banda, Danko Jones e Cª abriram o palco principal com nota suficiente para entrar em qualquer universidade.

Se o Optimus Alive fosse um concurso de moda, o primeiro lugar seria por certo entregue às Dum Dum Girls. O quarteto americano não quis deixar a coisa por menos: penteados a la carte, meias rendadas com os buraquinhos da ordem, olhos pintados, muito salto alto e um abanar de anca entre a marotice e o total alheamento, como fica bem a uma miúda que não quer fazer o papel de oferecida.

O problema é que o Optimus Alive é um festival de música, e nem só de estilo se alimenta o apetite e a sede de concertos. É certo que as raparigas contaram com um som pouco favorável, com muito reverb, feedback e outras atrocidades técnicas pronunciadas na língua inglesa, mas o desafinar e uma atitude pasiva e até desligada já pertencem ao seu foro. Longe de terem entusiasmado, as Dum Dum Girls não terão deixado muita gente a morrer de saudades.

Após hiato de 14 anos, os recém-reunidos Refused estrearam-se em palcos nacionais perante uma multidão de catraios muito grata pelo privilégio. Dennis Lyxzén, o carismático vocalista da banda hardcore sueca, liderou um concerto consistente e enérgico, onde não faltaram piruetas, cambalhotas e outros stunts a atestarem uma noção de espetáculo fora de série.

A onda de devoção algo adolescente do público perante a oportunidade de poder fazer parte da reunião da banda que, de acordo com Lyxzén, pode muito bem voltar a acabar daqui a seis meses, foi constantemente espicaçada por um alinhamento de acordo com as vontades dos presentes e pelos galanteios e pedidos de desculpa do performer, que agradeceu o dinheiro investido no bilhete, dado o contexto económico menos favorável do país. A esse propósito, Robber Be Dead deu seguimento ao concerto, numa ode revolucionária anticapitalista.

No reconhecimento de como eram insignificantes nos anos 90, “uma banda simples da Suécia”, surge Summer Holidays VS Punk Routine. A lembrança desse mesmo passado e a constatação do lugar ocupado hoje pela banda na história do hardcore deu lugar à confissão de que aqueles “cinco palhaços em palco” terão sido, eles próprios, os mais céptico face à reunião da banda. Assim se apresentou Refused Are Fucking Dead.

Obrigatória, New Noise chegou-nos quase no final, num ritual que se veio a repercutir no meio de público de refrões berrados, empurrões, chinelos e copos voadores. Inevitável, o adeus chegou com Tannhäuser / Derivé, acompanhado do lembrete, dirigido à plateia, para que, acontecesse o que acontecesse, se mantivesse fiel e a si própria.

“Vocês sabem qual é esta. Cantem comigo!” Assim ficou arrumada, ao segundo tema, uma das canções mais orelhudas e epidémicas (no bom sentido), ouvidas nos últimos tempos em território luso. Miúda, projeto composto por Tiago Bettencourt, Fred, Pedro Puppe, assente na voz e na imagem de Mel do Monte, subiu ao palco secundário para um concerto ainda nervoso, a revelar que há detalhes que só a experiencia e o tempo são capazes de aprimorar.

Uma atuação simpática, a contar com público bem doseado, cujo lugar na tenda resolveu marcar desde cedo, de modo a marcar presença na festa que já se sabia assegurada pelos LMFAO.

Numa conversa de circunstância, alguém comentava que o som dos Snow Patrol não era pop nem rock, algo que um bom gourmet remataria com o clássico “nem carne, nem peixe”. Será qualquer coisa parecida a um rock açucarado com traços pop, apontado a escalar os degraus dos tops até só parar na escada mais elevada. Certo é que, em festival, o seu som e atitude assentam que nem uma luva, mesmo tendo em conta alguma previsibilidade.

As músicas desfilam entre o espírito baladeiro e os arranques pop, e toda a dinâmica de palco gira à volta de Gary Lightbody, que com um sorriso de fazer derreter até os corações mais gélidos e uma imensa simpatia vai conduzindo a multidão aos picos a que correspondem os refrães cantados a plenos pulmões. Com um fantástico jogo de luzes e projecções visuais alternando entre fragmentos de videoclips e imagens do público e da banda, muitas delas a preto e branco, os Snow Patrol deram um concerto que não defraudou certamente os incondicionais da banda.

Enquanto os The Stone Roses se preparavam, certamente bebendo cerveja à velha moda inglesa (muita e depressa), o Palco Heineken recebeu Santi White, que adoptou Santigold como nome artístico (já depois de antes ter usado Santogold), num concerto que teve todos os ingredientes para ser inscrito como uma das maiores performances da edição de 2012 – isto apesar de ainda faltarem dois dias para a sua conclusão.

O som de Santigold é das coisas mais excitantes que a música moderna conhece hoje em dia: um som ecléctico, com curvas sonoras e intempestivas, onde para um mesmo caldeirão são atirados punhados, de dub, reggae, dubstep, pop e algum espírito retro. Tudo com um enorme sentido de melodia, ao contrário, por exemplo, de M.I.A., cujo fundo sonoro é sem dúvida mais denso e caótico e menos dado à harmonia.

Para lá da excelente prestação vocal de Santigold – que constantemente comunicava com a mesa de som para retoques na voz ou em algum instrumento -, o espectáculo visual foi de primeira água, com coreografias incríveis - sempre com muito abanar de anca, de rabo e espírito sexual -, que meteram um cavalo, malas de viagem e guarda-sóis à antiga com folhos rendados, e constantes mudanças de guarda-roupa, que foram do triângulo azul-branco-amarelo ao clássico preto e branco, passando ainda por um verde tropa.

Momento épico foi quando Santigold convidou para que os tivessem espírito de dançarino subissem ao palco, que de repente se viu invadido por algumas dezenas de rapazes e raparigas que ajudaram a colocar a temperatura da festa a um nível completamente febril. Festa imensa, esta, que Santigold ofereceu, e que teve um justo direito a nota máxima.

O concerto dos Stone Roses, que encabeçou o primeiro dia de festival, podia ter corrido pior. Valha-nos a devoção cega do público inglês, rumado em quantidade a Algés, cujo entusiasmo extrapolado, muitas das vezes, ajudou a que os olhos cegassem e os ouvidos ensurdecessem e pudéssemos, por momentos, enganarmo-nos ao achar que estivéramos a presenciar um qualquer momento divino.

I Wanna Be Adored, de letra fácil, a abrir em uníssono pelas vozes da assistência, chegou a contribuir para o engodo, no disfarce das debilidades vocais de Ian Brown, ocultas pelas palavras entoadas, do princípio ao fim (a par do instrumental!), pelos presentes.

Os temas mais representativos da cena de Madchester, ou pelo menos os mais conhecidos pelo ajuntamento de estrangeiros junto ao Palco Optimus, acentuaram a devoção provinda de terras de sua majestade, resultantes em coros encavalitados e numa comunhão entre o público inglês, movido, unicamente, a um único propósito. Em palco postada junto à bateria encontrava-se a bandeira portuguesa, mas estaria longe de ser injusto que, do outro lado, se encontrasse a do Reino Unido, num merecido obrigado aos evangelizados de Ian Brown. “Consegues acreditar que estamos a ver o Ian Brown? Estamos perante Deus...”, exclamou um miúdo aloirado, de sotaque britânico cerrado, incrédulo com a oportunidade que lhe foi dada (apesar de conhecidas as motivações pouco simpáticas e exclusivamente monetárias da reunião) pela banda, em poder assistir, ao vivo, a canções como Fools Gold (tão alargada), Waterfall, She Bangs The Drums e I Am The Resurrection. “Ouço isto desde pequenino”, rematou.

Já o público português, por entre a juventude que acorreu a este dia movido pelas sonoridades mais festivas, variou entre o desinteresse, o desconsolo, algum agrado ou, simplesmente, contentamento por ter colecionado, em má altura, este cromo raro, indispensável à caderneta dos colecionadores de música.

Demasiado pequeno, o Palco Heineken, cujas imediações transbordaram durante a atuação dos LMFAO, revelou-se também demasiado pequeno para receber os Buraka Som Sistema.

Desde os primórdios da “invenção” do kuduro progressivo - nome com que apelidaram, por graça, a sonoridade de fusão onde se movem e que, curiosamente, pegou – que facilmente têm vindo a conquistar o público, desdobrando-se numa amálgama de géneros misturados que muito lhes tem valido, além-fronteiras.

“Komba”, lançado em 2011, foi ainda mais à frente, na procura de novos ingredientes para a mescla única que são os Buraka, e misturou-se, a noite passada, com temas cuja revisita será sempre bem-vinda, como Kalemba (Wegue Wegue), a desencadear chamamentos embriagados pela Popota.

Diz a sabedoria popular que a justiça tarda mas não falha. Mais uma vez o provérbio se mostrou acertado, já que os Justice começaram tarde (01h20) mas nem por isso falharam em oferecer aos sedentos de abanar o corpo um DJ Set incendiário que percorreu de uma ponta à outra a ainda curta – mas sempre polémica - carreira da dupla francesa. Com grande aparato visual e um som a bombar de um número incontável de colunas, a festa fez-se em redor da cruz para aqueles que mostraram uma maior religiosidade musical (e força de pernas).

Zola Jesus sofreu com a debandada no Palco Heineken, terminado o concerto dos Buraka Som Sistema. O público que encontrou mostrou-se curioso, apesar de não fazer por disfarçar os sinais de cansaço, com as cadeiras roubadas à zona da restauração que não hesitou em trazer para dentro da tenda.

Encapuzada, teatral em danças tribais, desde logo deixou claro o pendor algo místico da sua música, adensado pelo violino que, ao em vez de suavizar as melodias, lhes acresceu um certo pendor de estranheza. Feliz por estar em Lisboa, e de se ter escapado a tocar a numa sexta-feira 13, visto ter entrado em cena às 1:45, Zola manteve-se serena, numa prestação coerente, que deixou para o fim canções mais poderosas, como Vessel, que melhor pareceram cair no goto da audiência.

Finda a atuação dos Justice, metros de distância, a programação da área secundária não se ficou por Zola Jesus. Os Death in Vegas, formato banda, ainda subiram ao palco, por volta das três da manhã.

O Optimus Alive prossegue esta tarde, já definidos os substitutos para Florece and the Machine. Uma tarefa ingrata que será assegurada pelos Morcheeba. Prognósticos?

Texto: Ariana Ferreira e Pedro Miguel Silva
Fotografias: Filipa Oliveira