A entrevista ao cantautor conimbricense partiu de "Parva que Sou", dos Deolinda, para chegar a "Rumba dos Inadaptados (A Morte do Jovem Contribuinte)", do Quinteto Tati - incluída no álbum "Exílio", de 2004.
SAPO Música - Ouviu a canção "Parva que Sou", dos Deolinda? Se sim, que impressão lhe deixou?
JP Simões - Ouvi. Prefiro Bach.
SAPO Música - Considera que uma canção pode ser uma arma? Ou, pelo menos, uma alavanca para a mudança?
JP Simões - Creio que, por exemplo, uma faca de cozinha tem uma imensa variedade de utilizações, desde cortar uma cenoura em pequenas rodelas de diâmetro variável para fazer um arrozinho de vegetais a desviar um avião de passageiros contra um enorme edifício na cidade mais influente dos nossos tempos, matar milhares de pessoas e desencadear uma dinâmica reactiva global.
Ora com as canções passa-se algo de semelhante: há canções tão desagradáveis, anódinas ou simplesmente parvas que podem provocar quedas de aviões ou mesmo azedar um refogado feito com carinho e com os melhores ingredientes. Por outro lado, há canções tão belas que podem embalar a mais funda das melancolias; tão espertas e espevitadas que podem motivar a mais solar paixão pela vida, etc...
Creio também que esta pergunta, reformulada para termos mais práticos e de acordo com as circunstâncias que motivaram este súbito interesse pela relação entre canções e agremiações de adultos jovens com intenções reivindicativas, poderia ser: “Considera que existe entre a população portuguesa um conjunto crescente de indivíduos motivados, organizados e com uma representação comum - uma ideia ou conjunto de ideais - que se possa impor como decisiva para uma mudança positiva no modo de vida da sociedade portuguesa, das suas instituições e agentes; conjunto esse que foi subitamente catalizado para a acção por uma canção ou por uma série de canções avassaladoramente pungentes?”.
Nesse caso a minha resposta seria não.
Creio, no entanto, que grande parte das pessoas vive descontente neste país há muitos anos e perdeu, ou de um modo geral nunca teve, confiança na sua própria capacidade reivindicativa, nas instituições democráticas e nos seus representantes, em suma, em si mesma. A resignação e a raiva têm crescido de mãos dadas no coraçãozinho do cidadão mas, enquanto foi dando para comer, beber, alimentar esperanças de grandeza pessoal e ir cuspindo maledicências (ou seja lá que outros luxos que as pessoas tomam como seus de direito) foi-se vivendo.
Nos últimos tempos, porém, as ilusões têm sido de péssima qualidade, os palhaços são rançosos e amargos, os animais estão pele e osso e, portanto, é bom que as pessoas tenham saído à rua para reclamar sobre a qualidade do circo.
No entanto, creio que estas manifestações estão longe de poderem ter algum alcance na prática e o que se viu e ouviu resume-se a duas ou três ideias pífias: os estudantes estão espantados e indignados por não terem emprego ao sair das universidades – pergunta-se se durante a sua vida académica a maior parte desta gente perdeu tempo a observar o que há muito tempo se passa no seu país, no mercado de trabalho e e na tal sociedade globalizada de que todos falam porque fica bem proferir expressões modernas – estudar pressupõe, pelo menos no intervalo das bebedeiras, olhar o mundo e preparar uma estratégia pessoal para enfrentar as dificuldades: se se resume a agradar professores para ganhar o papelito de entrada no reino dos céus então o resultado está à vista; desde sempre, outrossim, que a única rede social neste país foi a família – avós ajudam filhos que educam netos - mas é preciso não esquecer que o país que temos é o espelho do que os avós e pais têm feito (ou não feito) sendo que a revolução mais difícil e épica começa em casa e ao espelho – enquanto a malta continuar a fazer descriteriosamente aquilo que lhes dizem para fazer e depois vir simbolicamente reclamar, toda ufana da sua posição de vítima, que a culpa é de quem os enganou, os maus políticos e os maus patrões esfregarão as mãos de contente ao ver tal seara nova; finalmente, é exactamente esta mentalidade de Eusébiosinho (ver “Os Maias” de Eça de Queiroz) que conduz à bisonha palermice que se resume em frases de ordem como “A Luta é Alegria” ou “É preciso estudar para se ser escravo”: isto bem reformulado e em abono da evidência daria qualquer coisa como “é preciso ser escravo para achar que a luta é alegria”. Para fechar este assunto com chave de ouro, deixo-vos as sábias palavras do Professor Aníbal Cavaco Silva, entusiasta desta alegre causa:
“Importa que os jovens deste tempo se empenhem em missões e causas essenciais ao futuro do país com a mesma coragem, o mesmo desprendimento e a mesma determinação com que os jovens de há 50 anos assumiram a sua participação na guerra do Ultramar”.
SAPO Música - Que características realçaria da juventude portuguesa actual?
JP Simões - A idade.
SAPO Música - Considera-se um músico de intervenção? Como olha hoje para um tema como "Rumba dos Inadaptados (A Morte do Jovem Contribuinte)"?
JP Simões - Não me considero um músico de intervenção no sentido da acção política programática, à maneira dos idos anos revolucionários, mas, de vez em quando, não consigo evitar a introdução, nas minhas canções, de pequenas descrições que sugerem a existência de uma série de gente e de situações na vida deste país que me provocam o vómito e a exaltação da diáspora. Tive de tomar uma série de anti-ácidos aquando destas últimas eleições presidenciais, por exemplo. Creio, no entanto, que a música mais interventiva é e sempre foi a que fala do amor, do seu difícil parto, das suas delirantes promessas.
A “Rumba dos Inadaptados” é uma canção que fala, entre outras coisas, sobre o fosso que há entre o que é vendido às pessoas em idade escolar como sendo a atitude certa para uma boa cidadania e o que na prática é realmente o modo boçal de agir da generalidade dos cidadãos e das instituições que vendem essa pedagogia. Hoje, como se tem visto, ser um bom estudante e um cidadão exemplar contribui mais para que as pessoas se sintam trouxas (e com toda a razão e mérito) do que para o feliz desenvolvimento do país.
JP Simões - "O Sultão de Zanzibar":
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