"Quando ligo a rádio só ouço a «Só Gosto de Ti", a «Paixão» ou o «Amor», mas ninguém se lembra de passar a «Saudade» ou o «Adeus», que é uma música linda. Mesmo o «Fado» passa muito pouco...", desabafa Paulo Pedro Gonçalves ao comentar como a música dos Heróis do Mar é recordada hoje. O ex-guitarrista, acordeonista ou saxofonista da "primeira banda a fazer música de dança em Portugal" lembra-nos que neste, como em muitos outros casos, é limitador, até injusto, reduzir a carreira de um grupo a dois ou três temas mais emblemáticos.
Ora foi também para evitar esta memória parcial que surgiu "Heróis do Mar 1981-1989", a reedição integral da discografia do quinteto, trinta anos depois da edição do disco de estreia homónimo. Além deste primeiro álbum, a caixa especial inclui os sucessores "Mãe" (1983), "Macau" (1986) e "IV" (1988), além do mini-LP "O Rapto" (1984), da compilação "Singles 1982/1987" e de um DVD com atuações televisivas.
Ouvir estes registos ajudará a perceber o segredo que deixou os Heróis do Mar na memória coletiva: grandes canções, defende Gonçalves. Essas canções nasciam de "uma banda que não era igual às outras: usava outros instrumentos, fazia outra música, tinha outra poesia", acrescenta Pedro Ayres Magalhães. "Tínhamos uma atitude poética e patriótica numa altura em que não se podia falar nem em poesia nem em pátria", salienta ainda o então baixista do grupo.
A brava (e controversa) dança dos heróis
"Ninguém pretendia distinguir-se dos outros, foi uma coisa que ficou de muitos anos de inquisição, de perseguição, de salazarismo. Ficou a ideia de que as pessoas não queriam dar nas vistas, como se estivessem todas na tropa. E nós sentíamos isso e tomámos a iniciativa de dar a cara, o corpo e a nossa criatividade por uma profissão nova, por um grupo independente, porque não havia bandas: as pessoas todas que tinham bandas trabalhavam nos bancos, nisto e naquilo, e depois tinham uma banda de fim-de-semana - a não ser os músicos standard, dos bares ou das boates, mas isso era outra coisa", conta-nos Pedro Ayres Magalhães, situando-nos no Portugal de inícios da década de 1980.
O músico recorda também que essa diferença começou por ser incompreendida, situação que tornou os primeiros anos dos Heróis do Mar particularmente controversos: "Sentimos que fomos mal recebidos pela imprensa, os meios da época eram muito hipócritas e snobs. Já o Corpo Diplomático [banda anterior de alguns elementos dos Heróis do Mar] tinha aparecido numas revistinhas, nuns fanzines de música, mas nunca mereceu um comentário sério de um jornal diário. (...) Fomos atacados logo em 1981 pela comunicação social, que nos chamou fascistas. Isso era a pior coisa que podias chamar a uma pessoa em Lisboa, e nós tínhamos 20 anos... Tomaram-nos como se fôssemos parte de um movimento reacionário, de direita - não éramos, mas ninguém se preocupou em investigar se éramos ou não".
Esta polémica derivou muito da associação entre música e teatro encetada pelos Heróis do Mar, assinala. Uma associação que o músico considera singular em Portugal, tanto na altura como 30 anos depois: "O nosso grupo era um grupo de teatro e nós éramos as personagens das canções que cantávamos. Essa distanciação ainda não mudou. As pessoas ainda não percebem, em Portugal, o que é representação. Não se aprecia o verdadeiro teatro, o fato de uma pessoa não ser quem é quando se esconde atrás de uma personagem que cria. E nós quisemos fazer isso com a música porque os temas eram nacionais, não eram sobre nós. O que nós queríamos, através do teatro, era levar as pessoas a transportarem-se para o mesmo universo metafórico em que nós estávamos. Isso é que acho que ainda não mudou: as bandas ainda não conseguem representar, os músicos são sempre eles, não são personagens".
Heróis de ontem e de hoje
Em vez de desencorajadora, a forma como a banda foi acolhida por alguma imprensa - e consequentemente por parte do público - reforçou a determinação dos seus elementos. "Apesar disso continuámos a escrever discos e conseguimos fazer êxitos, conseguimos furar, entrar nas rádios, chegar ao coração das pessoas e as pessoas chegaram aos nossos concertos. Tivemos 100 concertos por ano em Portugal, de norte a sul, e não esnobávamos coisa nenhuma, tentávamos chegar a toda a gente", explica Pedro Ayres Magalhães.
As canções dos Heróis do Mar acabariam por chegar também a outras bandas que os considerariam inspirações: caso dos Delfins ou da Sétima Legião, refere o músico, ou dos mais recentes Os Golpes (que convidaram o vocalista Rui Pregal da Cunha para o single "Vá Lá Senhora") ou Os Capitães da Areia. "Os gestos de liberdade são sempre inspiradores. Fizemos as coisas com muita paixão, muita veemência. Defendemos os discos e tentámos explicá-los, mesmo num ambiente hostil... Não é só a música, acho que essas pessoas também admiram a atitude, o percurso e a verdade disto", defende.
Se o percurso da banda foi acidentado, as suas canções continuam prontas a fazer dançar. "A nossa missão era aquilo que vinha no disco: alegria [título de um single do grupo]", diz-nos Pedro Ayres Magalhães. Mais do que a controvérsia, são canções como essa que a banda quer recordar com "Heróis do Mar 1981-1989".
Atuações dos Heróis do Mar na televisão:
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