Palco Principal – Por pouco não se chamam, hoje, Trompas de Falópio – um dos nomes sugeridos aquando da escolha da designação da banda, corriam os anos 80…

Rui Reininho – É verdade, havia várias hipóteses. Pastorinhos de Fátima também estava na lista! Mas a minha entrada só aconteceu quando o projeto estava, já, em movimento. É engraçado: antes de me juntar à banda, fui entrevistá-la ao Pavilhão Académico do Porto – um dos primeiros sítios a dar concertos de rock em Portugal. Um ano depois, o Alexandre Soares, que não se sentia bem a tocar guitarra e a cantar simultaneamente, convidou-me para me juntar ao grupo e então começaram as mudanças…

PP – Já na altura era difícil ser artista em Portugal. Sempre foi, suponho – agora principalmente. Como tem a conjuntura económica, social e cultural do país «tratado» os GNR?

RR – Ainda há pouco conversava com o Toli [César Machado] e ele dizia que, depois da minha entrada, as coisas pioraram, mas que, quando o Jorge se juntou a nós, em 1983, foi o pior ano de sempre para a banda. Foi o primeiro ano em que o FMI esteve em Portugal e foi terrível. Tivemos apenas quatro espetáculos – um deles no Rock Rendez Vous, em Lisboa. Logo tínhamos que fazer outras coisas para sobreviver. Os discos deixaram de se vender. Mas, depois do álbum “Defeitos Especiais”, percebemos que valia a pena continuar a dormir debaixo da ponte, a transportar os instrumentos ao nosso lado nas carreiras de autocarros e no metro. Quando entrei para a banda, estava numa fase complicada da minha vida. Tinha ido para o estrangeiro com uma ajuda financeira que tinha cravado aos meus pais, mas tinha acabado por regressar – de mãos a abanar. Não quero parecer um sem abrigo, mas ia para os ensaios a pé, da baixa da cidade até à zona da Boavista. As guitarras eram taxadas e, para comprar um amplificador, todos tinham que descontar o dinheiro dos concertos. Tive que comprar microfones porque os que tinha não eram bons, então investi num clássico que ainda hoje vejo bandas – das mais indie às mais pop – a usar: um Shure SM58. Tudo isto para dizer que as coisas são feitas com bastante esforço e convicção. Os GNR sempre foram vistos como uns snobs do Norte, um bocado fozeiros. Mas essa é uma ideia apenas mediática.

PP – Quais as principais alterações que o panorama da música em Portugal sofreu desde então?

RR – Bem, posso dizer – não é vergonha nenhum – que somos nós que alugamos a sala de espetáculos, somos nós que investimos. Não há nenhuma marca ou instituição bancária por trás. Ao fim de 30 anos, somos nós que nos dirigimos à bilheteira. Digo isto, não de forma depreciativa, mas porque as pessoas não apostam em música. O “Retropolitana”, por exemplo, foi todo gravado neste estúdio, que durante muito tempo foi a nossa sala de ensaios. A maquinaria de hoje em dia permite que muitos discos sejam feitos em casa e esta é a nossa casa há 16 anos. Antes, andávamos com a casa às costas, ensaiávamos em garagens ou nos Galitos da Foz, que alugávamos a meias com outras bandas. A única coisa que lastimo é saber que não tenho um background que me possa proteger. No entanto, a música é mais do que um hobbie. Tem-me preenchido todos os dias e é um prazer muito grande viver assim.

PP – Não obstante uma carreira que já ultrapassa os 30 anos, são muitos os temas dos GNR a serem entoados, na ponta da língua, pelas gerações mais jovens. Acaba por ser esta a verdadeira recompensa de tamanho esforço, não?

RR – É ótimo fazer parte do cancioneiro nacional que não aquele tradicional. Há uns anos, o meu próprio herdeiro disse-me: “Estamos a dar as Dunas, tudo com flauta”. Sei também que em algumas manifestações se canta a Pronúncia do Norte – são adaptações que acho engraçadas. Não temos a pretensão de nos armarmos em modernaços e indies – somos mais índios.

PP – A música dos GNR não obedece, portanto, aos padrões impostos pela sociedade…

RR – Não, até porque, hoje em dia, não posso correr para todos os festivais. Fui, no ano passado, ao Primavera Sound, no Porto, e gostei muito. Aquele estilo relaxado, ir a um festival como quem vai dar uma volta num grande parque… Fez-me lembrar os primeiros festivais a que fui, nos parques de Londres e Amesterdão, com muitos freaks e muita flower power. Ainda hoje vi a definição de hipster – “é cool enquanto ninguém mais gosta”. Também já fui assim, por isso não critico. Aliás, ninguém se deve sentir culpado com os prazeres. Oiço música disco – Gloria Gaynor e Village People… Sempre que me engano durante um soundcheck, começo a cantar a minha versão do In The Navy! Mas a música pop de agora é muito ligeira. O grande Neil Hannon disse-me no dia em que o conheci: “Pop now is rubish. I think it is Lady Gaga’s fault”. Mas as coisas são cíclicas – espero que o nazismo não seja. As modas ligadas à música e a certos estilos de vida são sempre revisitadas.

PP – “A música pop de agora é muito ligeira”. E como é o rock de agora?

RR – Felizmente, há muitas vias e muitas maneiras de fazer rock. Há aquela ideia de que o mercado tradicional acabou, em jeito de “salvem o CD”, ou aquela atitude de tentar fazer música noutra língua que não a nossa. E, com ela, os projetos demasiado «à Benfica» - como costumo dizer. Com tantos estrangeiros a tentar vencer lá fora, acaba por não ser uma boa tática, digo eu. Se for à Grécia, por exemplo, uma noite de djing internacional não é propriamente o que quero ver – quero é estar com as pessoas e conhecer a música e a cultura desse país. Faço canções em português porque me sinto mais familiarizado e porque é preciso mais do que o ensino académico para contar uma boa história numa língua estrangeira, e eu aprendi inglês com a prática, com o conhecimento de rua.

PP – Com uma carreira já trintona, confessa-nos: há alguma fórmula para aguentar tanto tempo na ribalta ou houve momentos que deixaram os GNR à margem de acabar?

RR – Deve haver uma fórmula, mas não tenho a receita. Há uns tempos, eu e o Toli chegámos à conclusão que discordávamos em quase tudo, musical, social e politicamente. Mas não nos podemos queixar muito. O pior é a tendência para as pessoas ignorarem espetáculos interessantes, difíceis de concretizar, como o que fizemos com a Orquestra Sinfónica da Guarda Nacional Republicana. Os olhares snobs e avantgarde por parte da imprensa são um dos problemas que temos em Portugal. Podemos ter os melhores críticos de cinema, de música, de literatura, que sabem falar sobre tudo e mais alguma coisa, mas, por vezes, quando têm as coisas diante deles, desperdiçam-nas.

PP – No álbum “Voos Domésticos”, editado em 2011, em jeito de comemoração de 30 anos de carreira dos GNR, revisitaram alguns dos vossos maiores clássicos, vestindo-os com novas roupagens. Como foi voltar a pegar em temas já há muito «esquecidos», como Piloto Automático, Bellevue ou Sete Naves, por exemplo, cerca de 30 anos depois de os terem composto?

RR – O “Voos Domésticos” aconteceu com a grande intrusão dos GNR nas redes sociais, quando alguém resolveu questionar-nos quais eram as músicas dos GNR que as pessoas mais gostavam. E então começaram a aparecer nomes de temas nos quais já não pegávamos há muito tempo, como o Bellevue, que foi, inclusive, o primeiro em que experimentámos pegar de uma maneira criativa. O Hugo Novo fez um arranjo, o Mário Laginha fez outro, o Filipe Melo… Enfim, vários compositores contemporâneos trabalharam connosco para as músicas soarem de outra maneira.

PP – E não é que o “Voos Domésticos” viajou além-fronteiras?

RR – Sim, pensámos e investimos muito no “Voos Domésticos”. No festival Rock Mediterrânico levámos discos, em jeito de feirinha, como muitos artistas fazem hoje em dia. O disco também foi editado no Brasil, estivemos nos Estrados Unidos e fizemos um vídeo em Nova Iorque, aos pés da Estátua da Liberdade – não entrei nessas parte porque me tinha constipado, andei a fazer disparates na véspera: slalom na neve.

PP – Aproximam-se, perigosamente, as datas dos concertos no Coliseu do Porto e no Centro Cultural de Belém… Tocar em grandes salas ainda vos traz algum nervoso miudinho?

RR – É sempre um motivo de destabilização, mas nós precisamos um bocadinho disso – é isso a graça da vida. Até porque não se trata dum espetáculo comum: vão ser feitas várias alterações, há músicos que vão tocar connosco pela primeira vez… Enfim, acaba por não ter o mesmo funcionalismo de sempre. Na verdade, os concertos iriam acontecer em sítios mais pequenos, mas houve um interesse redobrado. No início, íamos adaptar as salas só para a plateia e para o primeiro balcão, até porque mais a cima, durante o inverno, faz frio. Mas, como os bilhetes estão praticamente esgotados, decidimos abrir a parte superior – a galeria – a preços populares e, quem sabe, pode ser que se vendam umas mantinhas. Também gostávamos de fazer uma espécie de workshop em que, por exemplo, 15 ou 20 pessoas que comprasses bilhete tivessem um atelier connosco, com direito a visitar o nosso estúdio, a assistir à montagem do palco, ao soundcheck…

PP – Márcia, Maria Antónia Mendes (A Naifa) e os Beatbombers são alguns dos convidados que vão subir ao palco com os GNR nestes concertos. Que critérios estiveram na origem da escolha destes nomes aparentemente tão díspares?

RR – Os convites partiram dos vários elementos. Eu falei com a Márcia, o Jorge com os Beatbombers… A Márcia, por exemplo, foi mãe há pouco tempo e vai tocar connosco nos dois concertos – sim, nós podemos fazer babysitting durante os ensaios.

Jorge Romão – Tudo surgiu a partir da admiração mútua, da vontade de experimentarmos outras sonoridades. Por exemplo, vai ser a primeira vez que teremos turntablism em palco – é aí que entram os Beatbombers! Um dos temas que vão tocar connosco é o Las Vagas. Se fossem três horas de música eletrónia, às quatro da manhã ia ser complicado. Mas nos sets ao vivo dos Beatbombers há samples de muitos tipos de música e outros sons – não é só riscar o vinil.

PP – Como antecipam a reação do público a este espetáculo inédito?

RR – O público mais velho vai aparecer, com certeza, com cachecóis e bengalas… Este dinamismo é como uma lufada de ar fresco, não só para eles, como também para nós: para ver se nós gostamos e se o público se mantém entretido. No Facebook mandaram uma boca do género: “Ai, agora o Rui canta sentado”. Eu posso cantar sentado, até porque não sei se há antecedentes de varizes na minha família, mas não é uma sessão acústica pura. Temos o violino maravilhoso da Ianina [Khmelik], que é uma artista muito dedicada à causa GNR, é a nossa solista. E o Hugo Novo, que vai deixar de tocar connosco, que, para além de músico, tem muito bom gosto técnico. Vai ser uma despedida feliz.

PP – Pretendem manter-se no ativo durante quantos mais anos?

RR – Já fizemos muitos discos, música para filmes, para rádio, para televisão… Mas ainda há muita coisa para fazer. O que temos nunca chega e as pessoas pedem sempre mais, por isso mais álbuns e mais concertos hão de vir.