"Não sou como uns gajos que há por aí que trazem todos os anos, de há dez anos para cá, dois ou três gajos ao CCB porque são os que vendem. Estou-me nas tintas para isso. Tento diversificar o mais possível, não repetir", explica-nos Duarte Mendonça, melómano octagenário que mantém, há 40 anos, uma ligação próxima ao jazz no papel de promotor e produtor. Na entrevista telefónica ao SAPO Música, o organizador do Estoril Jazz raramente abdica deste tom assertivo enquanto recorda alguns episódios da sua experiência com o festival criado por Luis Villas-Boas em 1971 - então com a designação Festival de Jazz de Cascais.
Embora o jazz seja parte integrante de vários festivais, e em alguns casos o género primordial, Duarte Mendonça defende que a sua proposta continua a ser diferenciadora e, sobretudo, autêntica. "As pessoas sabem que a minha linha não tem nada que ver com o Jazz em Agosto, que nem considero jazz. Acho que se houvesse pessoas minimamente credíveis dentro daquela administração vetavam aquela música porque aquilo é uma coisa execrável, abaixo de todos os parâmetros ou gostos que as pessoas possam ter", realça.
De regresso ao Casino Estoril desde sexta-feira passada, o Estoril Jazz ganhou, este ano, mais alguma projeção por ter sido escolhido pela Comissão Nacional da UNESCO – Portugal como um evento comemorativo do 2º dia Internacional do Jazz, assinalado a 30 de abril, apesar de as datas não serem totalmente coincidentes.
"Sendo o Estoril Jazz o festival mais antigo e mais importante que se realiza em Portugal, para eles também foi uma mais-valia", comenta o organizador do evento "conhecido pela Europa toda por ser aquele que melhores condições acústicas tem". Quem o diz são muitos road managers, garante Duarte Mendonça, orgulhoso de uma reputação capaz de sobreviver a alguns entraves, quase sempre financeiros. "O festival hoje está reduzido ao apoio que a Câmara me dá e ao Turismo de Portugal. Tenho de adaptar os músicos que trago, que qualitativamente são bons, mas são pouco conhecidos. E as pessoas, como não conhecem, nunca ouviram falar, não aparecem... porque não há divulgação", lamenta.
Quando o jazz estava em todo o lado
"A miudagem foi toda para a música pop", observa Duarte Mendonça, apontando aí o motivo da escassa expressão do jazz, pelo menos quando comparada com o cenário da sua adolescência. "Comecei a ouvir jazz em 1944 e tinha 15 anos quando comprei o meu primeiro disco de jazz. (...) Na altura, dançávamos ao som de orquestras como a Glenn Miller com as nossas namoradas. O meu pai dava-me 50 escudos e eu gastava 35 num disco e ficava com 15 para o resto das minhas despesas durante o mês. Nessa altura vi várias orquestras e especializei-me nisso com a minha irmã", recorda.
O promotor e produtor acredita que o jazz teria outro impacto junto do grande público caso este "fosse confrontado com essa música a toda a hora". Foi o que aconteceu com "Hey-Ba-Ba-Re-Bop", canção de Lionel Hampton que se tornou um êxito, em 1945, "porque passava nas rádios generalistas aí umas cinco ou seis vezes por dia. Aquilo pegou no ouvido das pessoas. (...) Era o dia inteiro com aquilo, uma coisa hoje em dia impensável". Duarte Mendonça realça a importância de programas de rádio de autor, como o Hot Club de Artur Agostinho, na Emissora Nacional, integrado no Programa da Manhã, que ouvia "religiosamente". No panorama atual, dificilmente encontra exemplos comparáveis, embora identifique alguns acasos de resistência em "Cinco Minutos de Jazz", de José Duarte, da Antena 1, excepções que confirmam a regra.
Nas últimas décadas, "houve muitas pessoas que se perderam para a pop, sobretudo juventude", reforça Duarte Mendonça. "Eles não ouvem, metem-se nas discotecas. Então no Hot Clube, aquilo é malta da noite que vai dali para o Bairro Alto. Vai lá beber umas cervejas baratas e depois vai para o Bairro Alto apanhar uns pifos e fumar uns charros. Não brinquem comigo... Amadores de jazz verdadeiros há à terça-feira quando vai o Doutor Veloso tocar com os putos da escola".
Sem meias palavras, não poupando o rock ao rótulo de "coisa execrável" a evitar "por quem gosta de música a sério", o organizador do Estoril Jazz reconhece, ainda assim, méritos em algumas vozes da pop, como Diana Krall, "que agora deixou de ser do jazz". A cantora norte-americana é, de resto, uma velha conhecida sua. "Já não tenho dinheiro para lhe pagar. A primeira vez que a trouxe foi em 1995. Tenho aqui uma fotografia com ela no CCB. Depois trouxe-a uma segunda vez, ao Parque de Palmela. Podia ter feito no Pavilhão Atlântico que teria ganho o dobro, mas não, quis fazer em Cascais e no parque, fiz questão. Fiz questão, paguei o preço". Também na fronteira entre o jazz e a pop, Herbie Hancock é outra figura que o organizador destaca. "Ponho-o no limbo porque é um camaleão. O gajo toca tudo: o bom, o mau, o de bom gosto, o de mau gosto ou o superlativo".
O cartaz de sonho e o cartaz possível
"Ter trazido aí a Count Basie foi o momento alto da minha carreira. Ou o Joe Anderson, um saxofonista que me apaixonava", recorda Duarte Mendonça ao passar em revista as várias edições do Estoril Jazz. Além dos artistas, há outras memórias que se impõem. "O primeiro festival que fiz sozinho, depois de me separar do Villas-Boas, foi um processo doloroso, na década de 80. Se não fosse a RTP, aquilo em 85, quando estava cá o FMI, tinha acabado, porque não havia apoios financeiros", relembra.
E depois há, claro, aquele artista que o dinheiro ou as circunstâncias nunca permitiram trazer. "Um dos nomes que me ficou aqui atravessado foi o Mel Tormé. Escreva este nome", aconselha-nos o organizador, "é um dos maiores cantores de jazz de sempre: branco, da West Coast, (...) teve uma vida de inferno - está num livro dele, a biografia It's Not All Velvet, porque ele tinha um timbre de voz velado. Chamavam-lhe o Velvet Fog [Nevoeiro de Veludo]. Esse gajo era genial. O gajo tocava os instrumentos todos e cantava como um deus".
Se agora é certo que nunca veremos Mel Tormé no Estoril Jazz (o músico morreu em 1999), Duarte Mendonça chama a atenção para o concerto do vibrafonista Gary Burton com o seu novo quarteto. A atuação está marcada para esta sexta-feira, 19 de maio, pelas 21h30, e nos dias seguintes o Auditório do Casino Estoril acolhe o sexteto Warren Vaché UK All Stars - no sábado, também às 21h30 - e Wycliffe Gordon Quarteto - domingo, às 19h30. Para o ano haverá mais e, se depender de Duarte Mendonça, melhor e principalmente diferente, como manda a tradição do mais antigo festival de jazz nacional.
Mais informações sobre o Estoril Jazz no site da Projazz.
@Gonçalo Sá
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