17"Descobri 'O Rei Leão' ao tomar conta dos meus sobrinhos. Nos anos 90, tentava perceber qual era a cassete VHS que lhes prendia mais a atenção", recorda Barry Jenkins ao SAPO Mag numa mesa-redonda por Zoom.
"Não havia o Baby Shark, era preciso pôr um filme", compara o realizador de "Mufasa: O Rei Leão", prequela do marcante filme de Roger Allers e Rob Minkoff que ajudou a revitalizar os estúdios Disney há três décadas, seguindo os passos históricos de clássicos como "A Pequena Sereia" (1989), "A Bela e o Monstro" (1991) e "Aladdin" (1992).
"Lembro-me de perceber que eles estavam a processar esta emoção muito complexa, possivelmente pela primeira vez, que é o que pode ser perder um pai - a dor, o trauma disso. E estavam a fazê-lo de uma forma muito segura. Achei que isso era uma coisa muito poderosa. Quando aceitei a tarefa de fazer este filme, apercebi-me de que esse era o limiar para mim, que a emoção neste filme tinha de ser tão complexa como essa", acrescenta o norte-americano cuja carreira ganhou outros voos há quase dez anos, com o oscarizado "Moonlight" (2016), e que tem passado mais pela produção (como a do aclamado "Aftersun", da escocesa Charlotte Wells) e televisão ("Dear White People", "The Underground Railroad") desde "Se Esta Rua Falasse" (2019).
As raízes no cinema independente levaram-no, aliás, a desconsiderar o convite de um grande estúdio para um regresso ao mundo de Simba. Mas houve um elemento que mudou tudo. "Foi o poder do guião. Quando me foi proposto pela primeira vez, não o li. Desprezei-o por hábito, por suposição", confessa. "Primeiro, eu, até agora, gerei todo o meu trabalho. Escrevi tudo o que realizei no formato de longa-metragem. Isto era uma coisa nova nesse sentido. Era também um filme de animação, também uma coisa nova nesse sentido. Simplesmente rejeitei-o sem sequer me permitir considerá-lo seriamente, ou seja, sem me preocupar com o que era e não com o que supunha que fosse", admite o cineasta de 45 anos.
O guião em causa foi escrito por Jeff Nathan, que já tinha assinado o da versão fotorrealista de "O Rei Leão" (2019), dirigida por Jon Favreau. Desta vez, o norte-americano teve o desafio de trabalhar uma história original. "Quando vi o que Jeff tinha feito com estas personagens, que achei tão inesperado, pensei: não seria maravilhoso fazer parte disto e usar um novo conjunto de competências, aprendendo uma nova tecnologia [uma combinação de técnicas de cinema de imagem real com imagens fotorrealistas geradas por computador] e contando a história?", salienta.
"Penso que as personagens do nosso filme têm o mesmo ADN e o mesmo espírito das personagens do filme original. A ideia da natureza shakespeariana do filme está muito presente", observa.
PAIS E FILHOS
"Mufasa: O Rei Leão" recua até aos primeiros anos do pai de Simba, acompanhando também as origens de Scar, o memorável vilão do filme original. Pelo caminho apresenta várias novas personagens, mas também recupera Sarabi, Rafiki ou Zazu. Ou ainda a dupla Timon e Pumba, mais uma vez o alívio cómico, que rouba as cenas decorridas no período que se sucede aos eventos de "O Rei Leão" (a ação alterna entre dois tempos, embora se concentre sobretudo no passado).
Numa história sobre família e paternidade, surge também Kiara, a filha de Simba e Nala, cuja voz na versão original é de Blue Ivy Carter, filha de Beyoncé e Jay-Z. A autora de "Lemonade" é outro nome do elenco, ao lado de Donald Glover, Mads Mikkelsen, Seth Rogen, Billy Eichner ou Thandiwe Newton. Aaron Pierre e Kelvin Harrison Jr. dão voz ao protagonista e ao melhor amigo (e "irmão") Taka, respetivamente. Na banda sonora de um filme que não ignora a componente musical há créditos de Lin-Manuel Miranda, Hans Zimmer com Pharrell Williams e Nicholas Britell.
Barry Jenkins revela-se orgulhoso da jornada que ajudou a delinear para esta galeria de personagens, elogiando mais uma vez o argumento. "Não explica muito, mas dá-nos uma descrição complexa e cheia de nuances de como estas personagens evoluíram para se tornarem, no caso de Mufasa, a melhor versão de si próprio, e no caso de Scar, a pior versão de si próprio. Achei que era algo muito interessante para as pessoas que desenvolveram uma relação muito íntima com estas personagens ao longo dos 30 anos de existência de 'O Rei Leão'".
O realizador destaca a cumplicidade entre o protagonista e o seu amigo de infância: "É maravilhoso ver como era forte a ligação entre Mufasa e Taka a certa altura. Como lição de vida, porque estas duas personagens são criadas na mesma família, não da forma que esperávamos que fossem criadas na mesma família, mas na mesma família, é possível ver como são diferenciadas devido à educação, ao ensino que uma criança recebe em relação à outra. Mufasa está a ser ensinado pela mãe de Taka a ser um com os elementos, a importância da coexistência de todas estas espécies, e o pai de Taka, Obasi, diz-lhe que toda a gente está abaixo dele, apenas porque é de sangue real".
"Sinto mesmo que ainda tenho a minha impressão digital"
Além de considerar que a prequela honra a memória do original, Barry Jenkins diz que esta não é uma grande viragem face aos seus filmes anteriores, ao contrário do que possa parecer ao primeiro impacto. "Sim, sinto mesmo que ainda tenho a minha impressão digital. Neste filme, há uma cena muito simples, em que depois de acontecer uma coisa muito calamitosa, uma personagem volta e fala com o pai, e o pai diz: 'Nunca ninguém poderá saber que fugiste, que fugiste da tua mãe. Isso nunca aconteceu. Estás a perceber?' A outra personagem diz, 'Mas eu não sabia. Estava apenas assustado'. Em vez de dizer, 'Não há problema em ter medo, a personagem diz, 'Não importa. O engano é a ferramenta de um grande rei'. Isso é tão matizado, tão subtil como qualquer conversa em 'Moonlight' e 'Se Esta Rua Falasse'. E, no entanto, a escala é épica. Achei isso muito revigorante, muito poderoso", contrasta.
"Por isso, senti que não havia maneira de não trazer o meu lado muito sério que faz um filme como 'Moonlight' para fazer um filme como este", reforça. "O destino do mundo está nos ombros destas personagens. Literalmente, estamos a ver estas duas crianças. Uma delas vai evoluir para se tornar um dos melhores pais que já vimos na história do cinema, e a outra vai evoluir para se tornar um dos vilões mais hediondos da história do cinema".
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