Como o cinema “tem uma grande capacidade de imitar a vida e de a preservar”, e “as pessoas dentro dos filmes ficam vivas para sempre”, quando a avó de Catarina Ruivo morreu, a realizadora decidiu que “a solução era filmá-la, para a manter viva”.
O filme mistura imagens do arquivo familiar, mas também outras atuais: “Como já não havia corpo, a minha avó já não existia, tive esta ideia de, no fundo, filmar o vazio, de filmar o sítio onde o corpo devia estar, e, de alguma forma, isso ser o corpo dela”.
Os participantes do filme “não são atores, são as pessoas que a rodearam e que viviam com ela, que a protegeram e a amaram”, é a empregada doméstica ou os funcionários da farmácia da qual era diretora técnica e proprietária.
“As pessoas que estão a ver projetam, inventam o corpo, veem o corpo, falam como se ela lá estivesse. É como se o vazio fosse o corpo, um bocadinho como quando fazemos um desenho com a moeda, em que pomos o papel por cima e é o que faz à volta que cria o desenho”, disse a realizadora.
Para Catarina Ruivo, que quando fez o filme estava “numa fase muito difícil” da vida, “até com o cinema”, filmar com pessoas “que nunca tinham filmado, vê-las descobrir o processo de filmar”, fez com que a realizadora se “voltasse a apaixonar um bocadinho pelo cinema”. “E perceber que é isto que eu gosto mesmo de fazer e o prazer que é filmar”, partilhou.
O processo de construção do filme decorreu “por camadas”. A realizadora começou por filmar o quotidiano da avó, com as pessoas que a rodeavam, e foi quando encontrou “uma caixa de cartas no sótão” que surgiu uma “nova camada” que acabou por levá-la a África.
“As cartas não eram como os ‘emails’ hoje dia, as pessoas punham lá os seus medos, os seus desejos, abriam a alma, e eu descobri uma nova intimidade com a minha avó, passei a viver um bocadinho dentro do mundo dela”, contou.
As cartas, dirigidas aos bisavós de Catarina Ruivo, eram referentes aos dez anos que a avó da realizadora viveu em Moçambique.
“Isso foi um novo processo, ir a África, aos sítios onde ela tinha vivido. Não num movimento nostálgico, mas ver como é que a vida avança e como é que os sítios podem ser ao mesmo tempo locais de memória e de transformação”, referiu.
Depois de ler as cartas, Catarina ficou “com imensa pena de não poder fazer perguntas”.
“As cartas são quase diários. O tempo não tem nada que ver com o tempo de hoje. Ela muitas vezes escreve as cartas ao longo das semanas, são quase diários da vida dela, daquilo que ela tem medo, daquilo que ela deseja. Descobri muita coisa [sobre ela]”, afirmou.
No filme, a avó ‘regressa’ a alguns locais de Moçambique, mas agora em fotografias e na voz da atriz Rita Durão.
“A voz ‘off’ foi um trabalho que eu gostei muito de fazer, com a Rita [Durão]. Não tentámos fazer uma voz ‘off’ com o sentido habitual, a ler as cartas, o que a Rita fez foi um trabalho de atriz. Ela está a representar um papel, está a fazer de minha avó em diferentes momentos da vida dela”, referiu a realizadora.
Todo o processo de produção de “A minha avó Trelototó” – que durou cerca de cinco anos - foi “muito longo e solitário” e “quase um processo de relojoaria”, já que as partes em que a avó fala – “porque ela fala e entra no filme – são montadas, às vezes é cortar bocadinhos daqui e bocadinhos dali e com eles fazer um discurso”.
A ‘estrela’ de “A minha avó Trelototó” “adorava” filmes. “Ela costumava de dizer que quando era nova adivinhou a televisão, porque dizia ‘um dia vai haver uma máquina que eu posso estar deitada na cama e só a ver filmes, filmes, filmes”, contou a realizadora.
O filme inclui uma cena da realizadora, os primos e a avó a verem filmes, na “sessão da meia noite” da família, que acontecia habitualmente. O amor da avó Trelotótó pelo cinema era “enquanto espectadora”, mas Catarina Ruivo espera “que ela tivesse gostado de se ver neste filme”.
“A minha avó Trelototó”, que integra a Competição Nacional do 16.º Festival Internacional de Lisboa - IndieLisboa, é exibido na segunda-feira à noite no Grande Auditório da Culturgest e na quarta-feira ao final da tarde na sala 3 do Cinema São Jorge.
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