Há 100 anos nascia Pier Paolo Pasolini, em Bolonha.
Foi sobre os cacos do pós-guerra italiano que ricos movimentos culturais surgiram – e dentro deles uma voz muito particular: se o Neorrealismo dava voz à uma classe operária ou simplesmente às pessoas tornadas miseráveis pela guerra, Pasolini foi buscar personagens realistas e incómodos para o mundo da esquerda política do qual fazia parte. Por outros palavras, não era uma vítima idealizada e idónea que surgia nos seus filmes, mas antes um submundo de proxenetas, prostitutas, ladrões, vagabundos e por aí fora.
Eram o que os seus polémicos e bem-sucedidos livros, “Ragazzi di Vita”, seguido por “Una Vita Violenta”, anunciavam. E os seus personagens amorais serviram para que fosse convidado por Federico Fellini para ajudar a dar credibilidade à prostituta vivida por Giuleta Massina em “Noites de Cabíria”, lançado em 1957.
Pasolini ajudou, mas quando foi ele próprio a tratar do assunto, as suas aspirações eram muito diferentes do mestre de Rimini: “Accattone” (1961), o seu primeiro filme, era uma perambulação pelos bairros marginalizados de Roma seguindo o seu protagonista, um proxeneta sem maiores escrúpulos que se orgulha de nunca ter trabalhado. Vive de explorar uma “subordinada”.
Logo com a estreia, Pasolini arranjou uma guerra com a direita (a democracia-social que ia aos poucos unindo-se aos restos do fascismo do pré-guerra) e com a esquerda, que não entendia como aquele personagem amoral poderia ser um exemplo para o levantamento das massas operárias.
Em relação a esta última, a coisa melhorou um pouco com “Mamma Roma” (1962), onde a prostituta encarnada por Anna Magnani tenta uma redenção farisaica, que leva o cineasta a desbravar pela primeira o seu ódio de estimação: a pequena burguesia.
Claro que os italianos de classe média, cada vez mais enriquecidos por uns anos 1950 generosos em termos económicos, nem queriam ouvir falar “desta gente” das periferias – enquanto Pasolini fazia questão de lhes mostrar que essas pessoas existiam e povoavam em grande número as franjas das grandes cidades.
Quando todo o mundo achava que já o conhecia, a virada de 360 graus dada a seguir deixou muita gente estupefacta: preso num mosteiro de uma pequena cidade por causa dos constrangimentos nas deslocações provocados pela presença do Papa, acabou por devorar o único livro que tinha à mão – o Novo Testamento. E dali saiu o austero “O Evangelho Segundo São Mateus” (1964), que reuniu a aridez da paisagem circundante com a força monocórdica e poética de um trecho da mitologia cristã. Os religiosos até hoje gostam do filme – uma singular ironia tendo sido ele feito por um ateu.
Cada vez mais desiludido com o marxismo, Pasolini trabalhou com um dos mais populares comediantes da história do cinema italiano, Totó – que em “Passarinhos e Passarões” (1966) faria o seu último filme. Desta feita, a esquerda é representada por um corvo! E muito falante.
Para efeito de longas-metragens, a Festa do Cinema Italiano termina o seu rescaldo em “Édipo-Rei” (1967), uma singularíssima apropriação da tragédia de Sófocles, a qual, não por acaso para Pasolini, serviu de base para o famoso modelo de Sigmund Freud na sua teoria psicanalítica (o complexo de Édipo).
O resultado tem nuances de uma jornada “jodorowskiana” (no sentido de delirante), onde a lógica interna da história é frequentemente desafiada, tal como as noções de tempo e espaço.
A programação do centenário de Pasolini no festival é composta por mais uma grande diversidade de filmes, entre os quais documentários como “Pasolini Prossimo Nostro” (um dos mais promissores – uma discussão com o realizador e a sua equipa sobre a sua obra-prima “Saló, ou os 120 Dias de Gomorra”), “Ignoti Alla Cittá” (uma curta-metragem inspirada no universo dos seus livros), “Qui finisce l'Italia” (explora uma viagem feita pelo litoral italiano pelo cineasta), “In un futuro aprile - Il giovane Pasolini”(sobre os primeiros anos através do testemunho do seu primo) e a possibilidade de rever em sala o grande clássico de Fellini, “Noites de Cabíria” – além de muitos outros.
A Festa do Cinema Intaliano tem lugar entre 1 e 10 de Abril no Cinema São Jorge, na Cinemateca e nos Cinemas UCI em Lisboa (há extensões por outras cidades).
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