“L'Art Brut” vai roubar o nome à expressão utilizada por Jean Dubuffet para denominar a obra de quem se encontrava vedado ao circuito artístico, uma arte que evita catalogações, convencionalismos e museus, uma arte embrutecida, alheia a conformismos, menos depurada e mais gutural, que não exclui, mas abrange. Se o profissionalismo e a execução irrepreensível dos Wraygunn os colocam um pouco à margem deste conceito, a ele vão de encontro pela via da organicidade e genuinidade em palco, da inclusão de géneros e da mescla de variadas texturas sonoras num cunho muito próprio, apesar da indissociabilidade das referências.

Sob a alçada e a liderança de Paulo Furtado, os Wraygunn subiram ao palco para uma noite também ela incatalogável, cumpridora e de revelação do novo trabalho, lançado este ano.
O arranque fez-se em modo narrativo, com "Paulinho" (desde logo assim chamado por alguns elementos da audiência mais entusiasmados) no papel de contador de histórias, em spoken word, com Tales of Love. A este tema, faixa introdutória do disco em apresentação, seguiram-se as primeiras saudações às “senhoras e senhores” do público, advertidos, logo de seguida, que vinha aí um disco “a eito, ou quase”. Um quase feito de extras, visto que “L'Art Brut” foi tocado na íntegra e em concordância com a ordem de alinhamento do álbum.

Don't You Wanna Dance foi a pergunta que se seguiu, em forma de convite indireto a uns passinhos de dança, com uma adesão ainda comedida, ou talvez apenas atenta, dado que a maioria estaria a ouvir o disco pela primeira vez. Explosiva no soul exalado e na presença algo penetrante, Selma Uamusse introduziu Kerosene Honey, não menos inflamável.

O assédio do público cedo se tornou uma constante, assente em convites para jantar ou em vontades denunciadas em levarem o vocalista para casa, que gracejou “Tanto amor... amor é bom!”, ainda sem saber que esse amor se iria fazer sentir até ao fim da noite. Seguiu-se That Cigarette Keeps Burning, espécie de tango arábico, semi-alucinado, bastante improvável mas a fazer todo o sentido no contexto Wraygunn. Já I Bet It All For You marcou um pouco a diferença, de encontro a um rock 'n roll mais clássico, mais branco, com a identidade da banda a ser vincada através dos coros de Uamusse e Raquel Ralha.

My Secret Love assumiu-se como a deixa para que o público se chegasse um pouco mais à frente, a pedido, e enganasse um pouco os espaços vazios. Com uma aproximação gradual do microfone pelas duas cantoras, a intensificarem o fundo vocal de suporte a I Feer What's in Here, surgiu este relato intimista, com toques de visceralidade. Depois, foi a vez do protagonismo ser cedido a Raquel Ralha, no domínio sedutor de Track You Down.

Para a conclusão, ficaram I Wanna Go (Where The Grass Is Green), com a batida a promover a animação fora do palco, I'm For Real, uma “música que fala sobre fazer música”, a dar lugar a um despique de guitarras entre Paulo Furtado e Pedro Vidal, e o remate deixado a cargo de Cheree Cheree, um original dos Suicide.

Paulo Furtado despediu-se com um “até muito em breve”, que acabou por se traduzir num regresso mais que esperado e que, esgotado “L'Art Brut”, obrigou a revisitações muito bem-vindas de temas mais antigos. Com o sampler do discurso de Martin Luther King (“I Have a Dream”) a fazer-se soar enquanto que o público se juntava à banda, de punhos elevados no ar, não restou a dúvida da passagem por “Eclesiastes 1.11” (2004), através de Soul City.
“É o fim do mundo!”, gritou alguém em premonição do que estava por acontecer -e assim foi, com o mote lançado por Ain't Gonna Break My Soul, de “Soul Jam” (2001), a deixar o público, que já se havia deixado conquistar pelo novo disco, irrequieto.

“Alguém se lembra disto?”, perguntou Paulo Furtado, e a reposta não se fez demorar em forma de imitação à introdução de Drunk or Stoned. E o fim do mundo continuou, até ter mesmo acabado All Night Long, com a banda a misturar-se em palco e Furtado a deixar mostrar a vontade em saltar para o público -o que, invariavelmente, lá acabou por acontecer. Na falta do que trepar, subiu-se para um dos balcões/ bares laterais e fez-se do candeeiro microfone, para depois se voltar a descer e pôr o público a berrar o refrão, entre mais debitações do menu para jantar.

De volta ao palco, restou o culminar da apoteose e a apresentação dos colegas, com uma chamada de atenção isolada de Selma Uamusse para o “senhor Paulo Furtado”. Senhor, pois claro! A quem restar dúvida, que não se esqueça de marcar presença para a próxima.

Alinhamento:

Tales of Love
Dont You Wanna Dance
Kerosene Honey
Strolling Round My Hometown
That Cigarette Keeps Burning
I Bet It All On You
My Secret Love
I Fear What's In Here
Track You Down
I Wanna Go (Where the Grass Is Greener)
I'm For Real
Cheree Cheree

Soul City
Ain't Gonna Breal My Soul
Drunk or Stoned
All Night Long

Texto: Ariana Ferreira

Fotografias: Filipa Oliveira