Na conversa que tivemos com André Tentúgal falou-se de discos pirosos, do país das baguettes e dos escargots, dos anos noventa, de amores e, também, dos novos «países» que deixámos ao abandono.
Palco Principal - Este disco parece ter resultado de um apurado e meticuloso trabalho de artesão. Chegaste a desesperar ao fim de mais de seis meses passados em estúdio, tendo apenas por companhia a tua sombra e o desejo de que a criatividade não saísse para comprar cigarros?
André Tentúgal - (Risos) Eu não fumo nem bebo, por isso não tive grandes hipóteses de fugir ao stress ou de arranjar soluções para o combater, mas todo o processo foi bastante calmo em geral. Não posso dizer que tenha havido um grande stress porque não tínhamos um prazo para acabar o disco ou uma data fixa para terminar as coisas. É verdade que quando a Time saiu e rebentou viveu-se uma expetativa bastante maior acerca disto, e aí surgiu uma ligeira pressão, a que se seguiu um período de tempo em que tanto eu como a produção – a Meifumado – passámos por algum stress. O que depois decidimos foi não ligar a essas expetativas, tentar não dar a isso demasiada importância e continuar a fazer as coisas com a calma e tão instintiva e intuitivamente como estavam a ser feitas desde o início. Foi um período de quase um ano de gravação.
PP - Time (better not stop) é um dos temas mais catchy que se fizeram nos últimos tempos em Portugal, se calhar o mais catchydesde que os Belle Chase Hotel cantaram We love Coca Cola em “Sunset Boulevard”, nos idos anos noventa. Satisfaz-me a curiosidade: já apareceram propostas para que este tema sirva de fundo sonoro a um anúncio de carros ou telemóveis?
AT - Sim, já tive algumas propostas para encaixar a música, mas ainda não aceitei nenhuma, vou-te ser sincero. Também não o fiz porque não apareceu nada com o enquadramento certo, mas isso não quer dizer que não vá aceitar no futuro, quando achar que é a proposta certa. Hoje em dia, a indústria da música, ou da promoção musical, vive muito destas pequenas coisas.
PP - Este disco tem, claramente, pernas para chegar a outros mercados que não o nosso – tem platina escrito em toda a parte. Já arquitetaste algum plano de exportação para “These New Countries”? Por onde começar?
AT - Desde o início em que começámos a gravar, e sem querer soar pretensioso, tínhamos a missão de que este disco fosse o mais internacional possível a todos os níveis, que se tornasse um objeto universal. É verdade que já tivemos algumas propostas de editoras – aliás, posso dizer-te que logo no dia a seguir a ter saído a Time recebemos alguns e-mails –, mas até agora não está nada fechado. Entretanto, com o hype – chamemos-lhe assim – que a música teve cá em Portugal, a editora tem estado a concentrar as energias no mercado nacional, mas sem dúvida que o objetivo é internacionalizar o disco e levar a banda a tocar lá fora.
PP - Em “These New Countries” ouvem-se alguns ecos da melhor eletrónica que se tem feito no país das baguettes e dos escargots e, quase como uma mensagem subliminar, uma paixão declarada pela chanson française. És um apaixonado da cultura francófona?
AT - Completamente, é algo assumidíssimo. Tenho relações familiares com França, país que já visitei bastantes vezes. Sempre me disse muito, ainda por cima viajei muito pela zona mais campestre francesa, pelo que sou completamente apaixonado pelo país e por toda a cultura em geral -não só a musical como também a cinematográfica. São correntes que sempre segui muito atentamente e que acabam por ter uma grande influência naquilo que faço, não só em relação à música, como também ao nível da imagem.
PP - Quais os discos que mais te acompanharam, desde o berço até aos dias de hoje, incluindo os mais pirosos que ouvias – ou não – em reuniões de família?
AT - O Gainsbourg desde pequenino, o que mais me ficou foi sem dúvida o “Melody Nelson” (Histoire de Melody Nelson). É um bocado óbvio mas é o disco que ficou comigo desde pequeno. Depois o Neil Young, os meus pais ouviam e sempre me acompanhou até hoje, sobretudo o “Harvest” – a última música de “These New Countries”,a Surrender, é completamente dedicada ao Young e ao “Harvest”. Não sendo piroso, também apanhei muito com Beatles, Beach Boys, esses clássicos todos. O mais piroso, se calhar, foram mesmo algumas coisas francesas que a minha mãe ouvia, tipo Joe Dassin e outras desse género. Fui apanhando com eles, claro, e tentando tirar o melhor que há do pior deles.
PP - “These New Countries” soa como se os anos noventa tivessem sido, de alguma forma, reinventados por um toque de varinha mágica, conseguindo ainda encaixar outras décadas de sonoridades e fazer com que tudo soe tão fresco quanto uma alface biológica. Como chegaste a esta conceção sonora e a este som tão eclético? Já tinhas um conceito global ou a ideia foi entrar em estúdio e ver como as coisas resultavam?
AT - Já tinha tudo muito pensado, principalmente a estética. Como tu dizes, é um disco bastante eclético, e cada canção tem o seu lugar. Mas queria que houvesse uma certa coerência, algo comum que as unisse a todas, e decidi que isso seria feito através da estética. Cresci nos anos 90 e há bandas que me marcaram imenso, como os Laika, os Stereolab ou outras mais avant garde que passavam na altura e que acabam por também estar, de certa forma, presentes neste disco. Queria que a estética sonora fosse uma marca do disco. Ando muito, muito cansado da moda do chill wave, dos reverbs, das massas sonoras mal produzidas mas que parecem outra coisa depois de terem sido enchidas com reverb. Não quis seguir essa tendência, mas ir exactamente no sentido contrário e partir para um disco bastante mais seco, com menos espaço, mas que fosse algo mais íntimo e que tocasse diretamente a quem o ouvisse.
PP - Como vai ser conciliar a vida de realizador com a de músico? Talvez o melhor seja pensares em arranjar uma secretária particular para chegares a todas as encomendas...
AT - (Risos) Já tive, uma estagiária, e durante esse período as coisas foram mais personalizadas. Acho que vai haver tempo para tudo, acaba por haver sempre. Quando há vontade, uma pessoa consegue sempre organizar-se. A pior fase já passou, a de gravar o disco durante um ano, misturá-lo, trabalhar no artwork e em todo o processo inerente à criação do objecto. Acho que, a partir de agora, vou voltar um bocadinho atrás, à fase em que estava a trabalhar, a fazer música e a dar concertos – que são, na maior parte, aos fins-de-semana, o que acaba por funcionar bastante bem. Sinceramente, não estou a contar que isto chegue a platina, como estavas a dizer, mas, se tomar proporções maiores, vou gerir as coisas de forma a conseguir dar resposta. Se tiver40 concertos em dois meses, irei fazê-los, e, se até aqui consegui gerir bem a minha carreira enquanto realizador, poderei também decidir pôr as coisas em pause e voltar no tempo certo. Não há nenhuma pressão relativa a isso, é seguir o instinto e ser intuitivo.
PP - O disco viaja por diferentes quadrantes musicais, mas o que nunca se perde é a ideia de classe e muito refinamento. Há alguns anos, os Junior Boys diziam que queriam fazer qualquer coisa como “canções de dança com alma” (e estilo, por que não dizê-lo?). E os We Trust, que têm para nos oferecer? Canções pop propícias a que se tirem do armário os vestidos de noite?
AT - Concordo completamente com os Junior Boys. Não sabia que tinham dito isso, mas corroboro. E posso até utilizar outro exemplo, que são os The Smiths, que têm canções super redondas, super catchy, pop, dançáveis e com letras bastante densas -uma característica do Morrisey que escrevia letras incríveis. Quis fugir à previsibilidade da pop plástica, com letras fúteis, desinteressantes ou de rima fácil, e tentar criar uma pop o mais interessante e o menos plástica possível. Gosto de cinema de autor mas sou também grande fã daquele género de cinema independente, que consegue chegar a toda a gente, revelando ter várias camadas. Acho que a pop também pode ser assim: pode ser como a Time (better not stop), que apresenta várias camadas que tornam o objecto artístico mais complexo e criam nele uma energia. A ideia é conseguir chegar a pessoas diferentes e tocá-las de formas diferentes.
PP - O amor é uma constante nos temas de “These New Countries”. És pessoa para apontar a um amor único ou vês-te por aí a conquistar corações?
AT - (Risos) Eu acho que não há um amor único, sinceramente não acho que haja um amor único. Acho que há amor, e o amor tem muitas caras e acontece em lugares diferentes, tem muitas formas de se manifestar. Acho que esse amor está presente no disco, pelo menos para mim, de várias formas. Não é dedicado a uma pessoa nem vai à procura do prazer de pessoas diferentes. Quando ouvir o disco, cada um vai poder encontrar o amor, ou ir à procura do seu próprio amor através daquilo que o disco lhe despertar. É um sentimento tão amplo que era impossível cingi-lo a uma só coisa.
PP - Que países novos são estes de que nos falas?
AT - Esses novos lugares referem-se a valores que hoje em dia estão um bocado perdidos ou ao abandono. Fala-se muito da crise – ando, como toda a gente, um bocado farto de ouvir falar da crise – e dos problemas, mas acho que as pessoas perdem demasiado tempo a falar dos problemas e pouco tempo a falar das coisas que, se calhar, são as soluções, e nem sequer reparam nisso. Esses novos lugares são o respeito, a união, a verdade, são os valores essenciais em que nós acreditamos mas parecemos esquecer. Acho que, quando lerem o pequeno prefácio que escrevi no artwork do disco, vão perceber melhor.
Texto: Pedro Miguel Silva
Fotografias: Inês Nepomuceno
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