Há cerca de dois anos atrás, Sufjan Stevens foi fortemente abraçado pela depressão. O artista, que tinha prometido um disco para cada um dos 50 estados norte-americanos – deu-nos “Michigan” e “Illinois” -, que havia filmado e composto uma banda sonora para “BQE” - uma exploração cinemática e sinfónica da Brooklyn-Queens Expressway – e para quem o Natal é sinónimo de edições bem aventuradas – obrigatório ter em casa a caixa “Songs For Christmas” e ouvir todos os CD`s enquanto que se enfeita a árvore de natal-, mergulhava num limbo habitado por fantasmas que lhe tolhiam a criatividade e a esperança e o faziam mesmo pensar na hipótese de nunca mais escrever uma canção.

O resultado discográfico desta fase perturbada da vida de Sufjan dá-se pelo nome de “The Age of Adz”, longa duração editado em 2010 e que serviu de prato principal ao festim musical apresentado ontem à noite no Coliseu dos Recreios. Isto porque chamar “concerto” àquilo a que assistimos há algumas horas é verdadeiramente redutor e pode mesmo ser considerado ofensivo.

As luzes apagam-se. Ouvem-se os primeiros acordes de “Seven Swans” e, num ecrã colocado no fundo do palco, projectam-se estrelas cadentes que vão formando desenhos com ar de ilustrações para livros de crianças a preto e branco. Sufjan e banda, com o ar de tribo fluorescente – com fatos pintados de azuis, verdes e rosas berrantes -, levam-nos numa curta viagem da escuridão para a luz. Quando Sufjan e as dançarinas e meninas do coro abrem umas asas imensas, transformando-se em homens e mulheres cisne, percebemos que iríamos presenciar algo imemorável e, pressentia-se, inenarrável.

Sufjan agradece a presença de todos naquela imensa nave espacial e diz-nos, em breves palavras, aquilo que podemos esperar: canções sobre o princípio e o fim dos tempos mas, sobretudo, canções de amor sobre o momento presente. Porque o passado pode ser penoso e, quanto ao futuro, pode revelar-se demasiado assustador.

Seguem-se dois temas de “The Age of Adz”: “Too Much”, um deleite visual onde Sufjan nos mostra uns movimentos de dança graciosos, e “The Age of Adz”, uma viagem de ficção-científica ao planeta Sufjan num tema por ele descrito como “uma canção de amor para o apocalipse”.

Pouco depois Sufjan Stevens pede-nos desculpa antecipada por um espectáculo que vai estar carregado de melodrama, pintado com as cores vistosas do psicadelismo, pelo seu comportamento bipolar e pela psicologia pessoal que, funcionando como terapia e cura, foi transposta para a sua música. Ao piano oferece-nos “Enchanting Ghost” e as desculpas, ainda que desnecessárias, foram prontamente aceites com os corações ao alto.

Entramos no mundo da física e das leis de atracção pelos opostos. Sufjan conta-nos que “I Walked” é uma canção sobre duas forças em colisão, e que este cenário é o que melhor reflecte a vida: o amor e o ódio, o Yin e o Yang, e até nos serviu uma piada que meteu calças Levi`s e cavalos.

Ao piano encanta-nos com “The Owl and the Tanager”, tema que poderia ter sido um conto romântico dos Irmãos Grimm sobre a conturbada relação entre presas e predadores.

Em “Vesuvius” assistimos a uma coreografia com uma intensa carga terapêutica, acompanhada por uma linguagem gestual a fazer lembrar as séries de ficção científica dos anos 70/80 (“beam me up Scotty"). Um estado hipnótico que, após uma forte luta introspectiva, nos conduz ao estado de festa e celebração.

Nesta fase, Sufjan Stevens acha por bem dar-nos uma explicação contextual sobre a forma como surgiu “The Age of Adz”. De peito aberto, olhos nos olhos, diz-nos que o processo de trabalho foi uma cura pessoal realizada através da transcendência do som, que a ideia foi colocar de lado os banjos e a folk despojada e, olhando a electrónica e toda a maquinaria como a origem do som, ficar aberto e disponível para a surpresa.

Contou-nos também que uma grande inspiração para este disco foi Royal Robertson, pintor, profeta e astrólogo amador afro-americano, que passou a vida a questionar-se sobre o fim do mundo, a morte do corpo e a imensa solidão que nos insiste em fazer visitas periódicas. Porém, ao contrário de Robertson, cujas formas luminosas incluíam ira e desespero, Sufjan continua a acreditar que a ligação humana é algo que nos permite ter esperança em melhores dias. Como homenagem a Robertson canta-nos “I want to be well”, um casamento perfeito entre a folk e a electrónica, onde Sufjan decide encarnar a personagem do Homem-Aranha, lançando teias e mostrando os seus poderes de super-herói humanizado.

“Futile Devices” devolve por momentos a tranquilidade ao Coliseu, um momento lacrimejante onde Sufjan nos fala da beleza de termos nascido do pó e de a ele regressarmos depois de a aventura da existência ter chegado ao fim.

“Impossible Soul”, o opus de “The Age of Adz” - assim como o “Requiem” de Mozart - com cerca de 25 minutos de duração, foi algo absolutamente incrível, uma imensa viagem que teve de tudo um pouco: um momento Daft Punkiano, com Sufjan usando e abusando da voz robótica vestindo uma indumentária brilhante que tinha como um dos adereços uma mini bola de espelhos; uma fase trance, com dançarinas num jogo de sombras por detrás de um cristal fosco; um cheiro a rap, com chapéus usados enquanto se debitavam palavras como armas de arremesso; um imenso carnaval brasileiro de aspecto freak, agora com Sufjan enfiado num estranho fato de pequenos s coloridos balões gritando “we can do much more together”; uma quase serenata, com Sufjan em cima de uma coluna e uma das dançarinas noutra, amando-se à distância. Tudo terminando com Sufjan de guitarra a tiracoloco e com um coro de dançarinas, que pareciam ter saído de um conto de "As 1001 Noites", confessando que tinham feito asneira da grossa: “Boy, we made such a mess”.

Épico, arrebatador, intendo, uma orgia visual sem precedentes, uma explosão musical aberta à experimentação e ao prazer de descobrir sem medo de errar.

No encore, precedido por cinco minutos de aclamação e delírio colectivo, Sufjan voltou despojado de adornos e levou-nos de volta a “Illinoise” e ao território da folk em estado bruto com “Concerning the UFO Sighting Near Highland, Illinois”, “Casimir Pulaski Day” e, para encerrar em grande “Chicago”. Sufjan coloca a máscara de macaco, os balões descem do céu, a festa é imensa, com todos os músicos e o público num estado partilhado de delírio.

Felizes aqueles que ontem à noite estiveram no Coliseu. Mais do que uma orgia visual sem precedentes ou de uma incrível viagem musical dedicada à livre experimentação, foi uma oportunidade única de presenciar um acontecimento musical, que se revelou um desvendar da condição humana. Magnífico.

Texto: Pedro Miguel Silva

Fotografias: Graziela Costa