O que faltou em novidade sobrou em coesão e savoir faire: "American Dream", o álbum mais recente dos LCD Soundsystem, já tem uns largos anos (foi editado em 2017). E mesmo esse chegou quase uma década depois do antecessor, "This Is Happening" (2010). Mas tal como os Massive Attack tão bem demonstraram na noite de quinta-feira, às vezes basta saber baralhar e voltar a dar para oferecer um concerto memorável.
A banda de James Murphy não foi tão ambiciosa como os autores de "Teardrop" nessa aposta, sobretudo a nível conceptual e cénico (uma bola de espelhos em palco tratou do assunto), mas soube conjugar uma dúzia de canções, entre clássicos e temas menos óbvios, de forma a manter o público interessado durante hora e meia. Interessado e, de preferência, embalado, graças a novelos instrumentais com uma precisão de relojoeiro suíço que por vezes se estenderam durante quase dez minutos.
Afinal, se há quem tenha um conhecimento enciclopédico dos ritmos que se movem entre o pós-punk e a pop eletrónica é o nova-iorquino cofundador da DFA, editora determinante para que o dance punk ganhasse fôlego no início do milénio. A voz que se fez notar ao repetir "Daft Punk Is Playing at My House" (single estranhamente ausente do concerto) revelou, desde essa altura, ter as lições dos Kraftwerk, Talking Heads, Gang of Four, New Order ou Depeche Mode bem estudadas e habilmente canalizadas para uma discografia relativamente curta mas também influente.
Não por acaso, "Radioactivity", dos Kraftwerk, foi colada a "I Can Change", nos momentos iniciais da atuação no Palco MEO, do qual os LCD Soundsystem foram cabeças de cartaz esta sexta-feira. Mais à frente, "Robot Rock", dos Daft Punk (outra vez eles), e a mais inesperada "Don't Go", dos Yazoo, tiveram breves aparições durante "Losing My Edge". Citações destas alargaram o sentido lúdico de um concerto que só desacelerou na primeira metade de "New York, I Love You but You're Bringing Me Down", com Murphy em modo crooner. E ninguém levou a mal que não tivesse propriamente voz para isso, ou não fosse a sua carreira a história de um melómano inveterado que acabou por ir conquistando palcos.
Numa das poucas intervenções da noite, o nova-iorquino agradeceu ter sido sempre bem acolhido em Portugal ao longo dos últimos 20 anos, recordando a sua estreia lisboeta, no Lux. Se em algumas visitas o vimos num formato mais minimal, agora é frontman convicto de uma banda com estofo para o maior palco de um festival. E continua a contar, entre outros colaboradores, com a coolness de Nancy Whang, teclista (e por vezes vocalista) histórica da DFA que também integra o projeto The Juan MacLean.
Apesar de petardos ocasionais como "Tribulations", hino que mostra os LCD Soundsystem no seu melhor e mais frenético, o ritmo dominante ao longo do concerto foi mais comedido, mas nem por isso menos certeiro. "You Wanted a Hit", deambulação de Murphy sobre êxito comercial e integridade artística temperada com ironia e considerações autodepreciativas (duas das suas pedras de toque) impôs uma marcha na qual os sintetizadores, a percussão, o baixo e a guitarra foram gerindo o protagonismo sem dramas. "Tonite", a única incursão pelo disco mais recente, também nunca chegou a rebentar. Nem "Someone Great", e ainda bem, porque esse é dos maiores encantos de uma das confeções mais perfeitas dos LCD Soundsystem.
Já o crescendo de "Dance Yrself Clean" compensou a espera com uma descarga de eletrónica pujante e dançável, a despertar uma euforia ainda assim suplantada pelos teclados de "All My Friends", clássico acompanhado por braços no ar e um coro que hooligans não desdenhariam. E como Murphy e companhia já são amigos de longa data do público português, até lhes perdoamos que nos tenham deixado sem um encore.
Não desistam de Ben Gibbard
"Fizemos este disco entre quartos e caves, nunca imaginámos que nos faria atravessar o Atlântico 21 anos depois. Mas não foi graças a ele, foi graças a vocês, que acolheram estas pequenas canções nas vossas vidas e nos vossos corações", agradeceu Ben Gibbard a meio do concerto dos The Postal Service no palco San Miguel.
O disco em causa é "Give Up", primeiro e único registo de originais do projeto que juntou o vocalista e mentor dos Death Cab for Cutie ao produtor Jimmy Tamborello (mais conhecido como Dntel) e à cantautora Jenny Lewis (na altura a voz dos Rilo Kiley). Lançado em 2003 pela Sub Pop, é o segundo álbum mais vendido de sempre da emblemática editora independente (depois de "Nevermind", dos Nirvana), num daqueles casos em que o triunfo comercial abraçou o brilho criativo.
Ao juntar a escrita vívida e confessional de Gibbard com texturas eletrónicas (os Death Cab for Cutie davam prioridade às guitarras), a colaboração gerou uma das mais bonitas pérolas indie de inícios do milénio, um conjunto de pequenas grandes canções intimistas, orelhudas e muitas vezes dançáveis no qual nenhuma parece estar a mais.
Se a revisitação de um disco destes num palco português já seria motivo para celebrar, o MEO Kalorama também acolheu a digressão que comemora os 20 anos de "Transatlanticism", o quarto e mais acarinhado álbum dos Death Cab for Cutie. Mesmo não sendo tão fresco e inventivo como "Give Up", é um belo exemplo da sensibilidade de Gibbard no retrato quotidiano de uma certa América suburbana. Não admira, por isso, que a faixa-título tenha sido cantada por personagens da série de culto "Sete Palmos de Terra" numa das suas sequências musicais de antologia. Por sua vez, "Give Up" destacou-se ao colocar o single "Such Great Heights" em "Garden State", filme de Zach Braff e outra referência obrigatória para uma imensa minoria que foi adolescente ou jovem adulta há 20 anos.
Dois em um irrecusável para os adeptos destas criações de Gibbard, a noite que juntou as bandas permitiu recordar os dois discos na íntegra, e com belíssimos resultados em ambos os casos. Tanto um concerto como outro cumpriram tudo o que prometeram, seguindo a ordem dos alinhamentos dos álbuns com vozes e instrumentação sem mácula, cuidado a que o público respondeu com uma devoção palpável.
Será difícil encontrar outro concerto do festival com uma cumplicidade tão sentida como a que marcou logo "The New Year", tema inaugural da atuação dos Death Cab for Cutie. O quinteto de Washington defendeu tão bem as cores da pop vitaminada de "The Sound of Settling" como o salto da comoção para a explosão de "Transatlanticism" - "I need you so much closer", sussurrou, primeiro, e gritou, depois, Gibbard, já entre guitarras ao alto, com muitas vezes a acompanhá-lo.
Numa noite nostálgica, também o vocalista regressou à adolescência ao partilhar as origens de "We Looked Like Giants". "Na América temos algumas ideias arcaicas sobre sexo", disse, antes de confessar que foi um dos muitos adolescentes que fez sexo no carro, inspirando-se nessas experiências para a canção.
Postais com sentimento (e uma versão inesperada)
Na segunda das suas duas horas em palco, já ao lado dos The Postal Service, Ben Gibbard apresentou-se vestido de branco, tal como os outros elementos da banda (os Death Cab for Cutie tinham escolhido o preto). Sem abdicar da melancolia, "Give Up" tem canções mais cintilantes, e por isso contou com cenografia à altura num espetáculo luminoso e acolhedor.
Para o caderno de memórias fica "Such Great Heights" entoada por uma multidão comovida, os momentos duo ele & ela de "We Will Become Silhouettes" e "Nothing Better" (com Jenny Lewis a ganhar protagonismo) ou o vocalista a trocar a guitarra pela bateria na trepidação final de "Clark Gable" e na despedida distorcida de "Natural Anthem". "Brand New Colony" tornou mais evidente a sintonia entre a banda e os espectadores quando Gibbard desafiou o público a repetir o último verso da canção. "Everything will change", gritaram muitos fãs que não deixaram de voltar a "Give Up" após mais de 20 anos de mudanças.
Talvez motivados por essa ideia, os The Postal Service decidiram mudar um alinhamento à partida sem surpresas ao dizerem adeus com uma canção que a maioria não esperaria: "Enjoy the Silence", clássico maior dos Depeche Mode. Tirando um ténue reforço eletrónico, não foi uma versão que divergiu do original, mas teve o efeito de uma apetitosa cereja no cimo do bolo na mesma. Melhor(es) concerto(s) do festival? Certo é que o patamar agora é outro.
Uma dupla menos dinâmica
Antes do dois em um de Ben Gibbard, os The Kills acompanharam o anoitecer dos espectadores que se dirigiram ao Palco San Miguel. E não foram poucos, embora tenha sido pena constatar que boa parte não parecia muito sintonizada com a música de Alison Mosshart e Jamie Hince. O que não seria um problema caso as conversas, fotos de grupo e brindes de cerveja que se multiplicaram pelo espaço não prejudicassem a experiência de quem compareceu para... ver um concerto.
Etiqueta festivaleira à parte, a atuação de uma das duplas de culto do rock dos últimos 20 anos também não fez propriamente jus às de outras ocasiões. Reconheça-se que a britânica e o norte-americano foram sempre competentes, tanto no despique de algumas interações em palco, entre desvarios de olhares e de guitarra, como na provocação da vocalista ao público das primeiras filas. Mas ficaram aquém da garra que lhes parecia tão natural em concertos magnéticos e trepidantes como o do Coliseu de Lisboa, há quase dez anos. Se nessa altura se apresentaram com mais dois músicos, incluindo um baterista igualmente aguerrido, desta vez recorreram a material pré-gravado, o que diluiu logo algum impacto.
Também não ajuda que o seu disco mais recente, "God Games" (2023), seja dos menos essenciais, acusando redundância num percurso que terá atingido o auge criativo ao terceiro álbum, "Midnight Boom" (2008). "Last Day of Magic", recordação dessa fase, esteve entre os melhores momentos de um concerto que deixou de fora trunfos como "Tape Song", "Cheap and Cheerful", "The Last Goodbye" ou "The Good Ones", preteridos face a uma nova colheita algo indistinta.
"Doing It to Death", talvez o pico de intensidade, e a sempre bem-vinda "Future Starts Slow" dispararam a carga visceral que se daria por garantida ao longo de toda uma atuação dos The Kills - e até os espectadores que tinham estado mais dispersos repararam nela. Mas só o fizeram já no fim... Não chegou a ser tempo perdido, Mosshart e Hince é que nos habituaram mal.
Nesta sexta-feira atuaram ainda no MEO Kalorama os Jungle, Ezra Collective, Nation of Language, Olivia Dean, Nation of Language, English Teacher ou Glockenwise, entre outros. O terceiro e último dia da terceira edição do festival, este sábado, 31 de agosto, recebe Burna Boy, Raye, Soulwax, dEUS, Yves Tumor, Yard Act, Overmono ou Ana Moura.
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