O último álbum, de 2005, saiu numa altura em que o músico, compositor e intérprete norte-americano travava já uma batalha contra o cancro, que o fez perder quase tudo e o levou a recomeçar.
Depois de cerca de 45 discos de ouro e platina e trabalhos gravados que representam mais decem milhões de discos vendidos, Mark Spiro esteve à conversa com o Palco Principal, de forma brutalmente honesta e aberta, para revelar como encontrou a paz numa vida mais simples, longe das luzes da ribalta, e no prazer que tem sido colaborar na carreira das filhas Ruby e Summer. Ao analisar as transformações que observou na sua vida familiar, mas também a crise económica e social que afeta os Estados Unidos e o mundo em geral, Spiro fala da ruína como "caminho para a transformação" -um conceito que está presente ao longo de todo o novo trabalho, “It’s a Beautiful Life”. Os volumes 1 e 2 de “Care of My Soul” chegam a 18 de maio.
Palco Principal - No seu último lançamento, “Mighty Blue Ocean”, em 2005, foi muito franco sobre a sua doença e todos os sentimentos e pensamentos que ela lhe trouxe. Depois de tantos anos com muito poucas notícias, e sendo uma fã de longa data, fiquei comovida por saber que o Mark Spiro estava de volta aos discos, ainda por cima, com um álbum intitulado “It’s a Beautiful Life”. Para começar, pergunto-lhe como é que tem estado e o que é que tem feito?
Mark Spiro - Desde 2005, tenho tentado recuperar de uma situação muito dura... Com o desafio do cancro e sem seguro de saúde, fiquei falido. A quimioterapia e a radioterapia custaram 660 mil dólares... Vendi muitas canções para as conseguir pagar. Em 2006, mudámos para a praia e arrendámos uma casa. Comecei a escrever canções sobre a minha redenção e a minha recuperação e reparei que as minhas filhas cantavam as novas canções enquanto corriam para dentro e para fora de casa, para irem surfar...E aí, pensei: "Por que não? Vou produzir um trabalho para elas". E assim nasceu o projeto RubySummer. Elas assinaram com a Disney em 2008 e este tornou-se, praticamente, o meu amor e o meu trabalho. Eu sempre fui um escritor do tipo uma-canção-por-semana. Quando não estava a trabalhar com as minhas filhas, escrevia canções... é aquilo que faço. Já agora: comove-me que tenhas ficado comovida!
P.P. - Numa primeira análise, pensei que o título pudesse conter alguma ironia, mas é, realmente, uma coleção de canções muito positivas e inspiradoras, com aquela inocência poética que é a sua imagem de marca, mesmo quando os tópicos e o contexto atual poderiam, tão facilmente, levá-lo para uma abordagem mais agressiva. O contraste com os anteriores álbuns “King of the Crows” e “Mighty Blue Ocean”, mais negros, levam-me a perguntar-lhe se sente que dá mais valor à vida, atualmente? Lidar com a doença foi uma experiência transformadora?
M.S. – Quando recebes a notícia de que poderás estar morto dentro de pouco tempo, tudo muda, ao ponto de NÃO morrer se transformar no teu trabalho. Se escutarem bem as letras, aquilo que soa positivo e inspirador é, realmente, sobre como amar a vida na sua tragédia. No tema “It’s a Beautiful Life”, as letras falam sobre confiar e acreditar, apesar da desilusão. Quando escrevi essa canção, tínhamos acabado de nos mudar da casa onde criámos as minhas filhas, a casa que eu adorava. Deixei de conseguir pagá-la e houve muitas lágrimas. “Dream Big, Pray Hard” é sobre quando corres atrás de grandes sonhos, é melhor apertares bem o cinto, porque vai doer... Aliás, um dos versos preferidos que já escrevi está nessa canção: "Dream Big, Pray Hard, your already there cuz you already are, loved by the power that shines in those stars, so Dream Big, Pray Hard".
P.P. – A mensagem essencial deste álbum, para mim, está num “regresso ao básico” como a solução (e uma das “vantagens”) da crise económica e financeira que o mundo está a travessar. Concorda? Na sua opinião, para onde é que nos estamos a dirigir, globalmente, neste momento?
M.S. – Concordo, porque, para mim, “regresso ao básico” é a simples verdade de que dinheiro, fama, posição, estatuto são coisas que não contribuem para a minha paz de espírito ou para o amor no meu coração. A solução está algures na expressão "a ruína é o caminho para a transformação". Essa ruína manifesta-se de forma diferente para cada um e para cada coisa... Reis colapsam, países caem, as pessoas vão à bancarrota e algumas raparigas simplesmente não gostavam de mim. O truque reside em desativar as minhas expetativas com humor e aceitação pelo fato de que, no final, somos apenas pessoas que querem pertencer a algo e ser amadas. Quanto à crise económica, espero que não tenhamos que arruinar tudo para fazermos a transformação, mas talvez seja o único caminho para uma mudança duradoura...
P.P. – Por falar em mudança, o Mark escreveu o tema “A Great Big Change Comin’ On”, que integrou a campanha eleitoral que levou à vitória do Presidente Barack Obama. Esteve envolvido nessa campanha? Com uma nova eleição no horizonte, as pessoas, nos Estados Unidos, continuam a perder as suas casas e, como refere, sarcasticamente, no tema “Brand New Beautiful Day”, continuam a «safar os ricos». Acha que a situação atual era inevitável, considerando os antecedentes, ou está, de certa forma, desiludido com este mandato? Na sua opinião, enquanto americano, quais deveriam ser as prioridades?
M.S. - Oh, esta é dura! Escrevi esse tema muito antes do Obama entrar nos radares e alguém da campanha adotou-o. Em relação à América e à sua reestruturação inevitável, vai ser duro. Transformámo-nos num reality show - egocentrismo misturado com a ideia de que temos direito a tudo, projetando uma imagem de compaixão pelo mundo, que disfarça o nosso imparável mecanismo de dominação e busca de riqueza... Quando 1% do mundo detém 99% da riqueza, alguma coisa vai rebentar. Para responder à tua pergunta, sim, é muito desapontante e deixa-me com um sentimento de "não posso fazer nada sobre isso", mas, como disse na canção “Might as Well be Me”, "Love what I Got, forget what I don’t, Keep a steady pace rowing my boat, find a way to smile when everyone won’t, Someone’s gotta do it so it Might as well be Me".
P.P. – Musicalmente, críticos e jornalistas gostam de catalogá-lo como um artista de AOR (Adult Oriented Rock)/ rock melódico, quer pelo seu trabalho, quer pelos temas que escreveu para nomes como as Heart, os Giant, John Waite ou os Cheap Trick, entre outros, mas torna-se cada vez mais difícil identificá-lo apenas com um estilo. Se recuarmos aos início da sua carreira, foi uma longa caminhada desde os dias do álbum “In Stereo”, com aquele som euro-pop da década de 80. Pop, rock, soft jazz, country, aquele som típico da California que sabe a sol e a mar - o que é que lhe dá mais prazer hoje em dia, enquanto compositor, músico e produtor? É fácil responder às expetativas dos fãs e da indústria, sem comprometer a sua liberdade artística?
M.S. – Bem, o “In Stereo” foi há tanto tempo que já nem me lembro dele como parte da minha carreira...E, se não fosse a maldita internet, tinha conseguido que as pessoas também se esquecessem dele. Nos anos 80 e 90, fui chamado para escrever música rock para muita gente. Aliás, os meus primeiros álbums eram demos de temas escritos para outras pessoas... “Care of My Soul” foi o primeiro álbum que escrevi para mim. Não penso nas expetativas da indústria porque tenho a impressão de que já não existe nenhuma...A mesma coisa com os fãs. Até há bem poucos meses atrás, nem sabia que ainda tinha meia dúzia de fãs! Viva o Facebook! Fui abençoado por, em todos os meus álbuns, não ter havido input por parte das editoras... Eu escrevo os discos, gravo-os e as editoras lançam-nos para o mercado. O homem que começou isto tudo foi o Magnus Söderkvist [A&R sueco, em editoras como a MTM Music ou a Atenzia Records]. Ele ouviu a música, encontrou-me e fez acontecer, e estou-lhe muito para além de agradecido! Musicalmente, aquilo que me dá mais prazer, estes dias, é escrever sem limitações, como sempre. Em segundo, é ver as minhas filhas crescerem e transformarem-se em grandes pessoas.
P.P. – Quais são as suas principais influências musicais, no momento?
M.S. – A maior parte das vezes, é aquilo que a Ruby e a Summer trazem para o estúdio, para eu ouvir… Adoro grandes canções! Zac Brown tem canções fantásticas, assim como Mumford & Sons, Katy Perry... E, como deves ter percebido, adoro música contry!
P.P. – Na forma como fala das suas filhas, dá para perceber que a família tem sido um importante apoio na sua vida. Lembro-me de várias canções, ao longo dos anos, em que falava do seu papel como pai, e tem sido incrível vê-las crescer e ver a sua carreira a tomar forma... Deve estar muito orgulhoso, sem dúvida. Ao crescerem num ambiente tão musical, esta foi uma escolha de carreira natural para a Ruby e a Summer. Conhecendo a indústria como conhece, apoiou-as desde o primeiro momento? Viaja com elas para os concertos, está envolvido no processo?
M.S. – Eu estava muito envolvido, mas cada vez estoumenos… Elas cresceram. Eu atirei-as para a parte mais funda da piscina e elas transformaram-se em excelentes nadadoras. Realmente, às vezes desejo que elas estivessem a fazer outra coisa. O negócio da música é tão duro - cem nãos para um sim. Está tudo tão dependente da sorte, de conheceres alguém, do timing, é necessária tanta força e tenacidade. Já para não falar de uma autoestima incrivelmente saudável… Tens que conseguir rir de ti próprio todos os dias! Mas a Ruby e a Summer são as artistas mais verdadeiras que conheço... Meu Deus, as coisas que elas me têm ensinado! São brilhantes! No que diz respeito ao apoio da família, precisava escrever um livro sobre o assunto, mas aqui vão alguns dos pontos altos.A minha mulher e as minhas filhas ficaram ao meu lado durante: dependência de drogas; reabilitação; prisão; bancarrota; cancro. Será que preciso de continuar? Acho que já chega... Nós amamo-nos muito para além das palavras... Voltando ao lema "a ruína leva à transformação", já houve uma tonelada de transformação na minha vida e na minha família! No ano passado, as minhas meninas fizeram uma digressão pelas escolas secundárias da Califórnia, e eu fui com elas, enquanto roadie e «homem do som». Eu conduzia a carrinha, ficávamos em motéis baratos, as miúdas tocavam numa nova escola todos os dias e a minha mulher tirava fotografias e gravava os concertos em video. Foram as melhores nove semanas que já tivemos! Aprendemos e criámos laços, foi uma caminhada muito feliz, fantastica! Isto é que eu chamo uma vida abençoada!
P.P. – Regressando ao seu trabalho, de repente, temos notícia de três novos lançamentos de Mark Spiro durante o primeiro semestre de 2012. Como é que este ano se revelou tão prolífico? Com o album “It’s a Beautiful Life” ainda tão fresco, porquê lançar os volumes 1 e 2 de “Care of My Soul” no mercado apenas alguns meses mais tarde?
M.S. – Já viram como eu sou sortudo? Com a minha idade, ainda há algumas pessoas que me pagam para fazer discos! Na verdade, gostava de ainda fazer um quarto disco este ano...O negócio da música mudou, e a rádio já não é o sistema de entrega que costumava ser. Com a internet, a «digestão» da música é como fast food. Assim, como consigo escrever que nem um idiota, por que não lançar tudo e continuar a escrever e a lançar? Nunca tive muitos fãs em nome próprio… Talvez a promoção destes trabalhos todos leve outras pessoas a conhecer aquilo que eu faço... Espero bem que sim!
P.P. – “Care of My Soul” ainda é um dos preferidos entre os fãs. Lançado originalmente em 1994, é brutalmente diferente de “In Stereo”, numa demonstração refrescante do seu vasto leque de talentos e interesses. Percorrendo a sua discografia, apercebi-me de queo álbum saiu durante o boom do grunge, que alterou profundamente a face do rock. Enquanto natural de Seattle, como é que viveu essas mudanças na indústria musical que, de fato, nunca mais foi a mesma?
M.S. – Acho que é tão simples como isto: sou um escritor. Aquilo que adoro fazer é contar uma história ou expressar um pensamento que é único e motivador. Uma nova forma de ver o mundo, o amor, a perda, tudo. Não importa qual é o sistema de entrega que eu utilizo... Pop, country, rock, jazz, hip hop -eu adoro tudo. Infelizmente, escolhi um negócio que me obriga a dizer “sim” a praticamente tudo. Se quero criar uma família, pagar a renda, mandar as minhas filhas para a escola, tenho que dizer que sim e fazer o trabalho. Então, ao longo do caminho, fazes algumas escolhas que não são as tuas preferidas. Tal como um trabalhador que é obrigado a escavar uma vala que não quer escavar, mas tem que comprar as mercearias para o jantar, por isso pensa: "deem-me lá a pá!". Seattle foi uma grande influência. Chuva, peixe, montanhas, rebelião, aquela atitude de “que se lixe o mundo”… Mas ultrapassei isso e encontrei-me!
P.P. – Então, quase 20 anos depois, porquê reeditar “Care of My Soul”? E o que é que nos pode dizer sobre o segundo volume? Tem partilhado algumas das canções qe vão integrar o álbum na internet, e estaspodiam, facilmente, ser o seguimento de “It’s a Beautiful Life”... Então, o que é que o levou a recuperar o conceito de “Care of My Soul”?
M.S. – Foi um presente. Christer Wedin, da Sun Hill Sweden, contatou-me para falar de uma reedição do “Care of My Soul”. Disse-me que o adorava e que achava que o álbum não tinha tido a oportunidade que merecia. Depois, mencionou um possível volume 2. Eu fiquei tão entusiasmado que lhe fiz uma oferta que ele não podia recusar. “Care of My Soul’ foi o disco mais apaixonado que fiz até à data. Tinha passado um ano na Interscope a escrever canções, na esperança de fazer um disco, e o Sr. Iovine [Jimmy Iovine, produtor e presidente da Interscope Records] continuava a mandar-me escrever para outras pessoas. Finalmente, fartei-me… Deixei-os (processei-os, Ha!) e fiz o “Care of My Soul” todo com o dinheiro que ganhei com o "Top Gun" [escreveu o hit “Mighty Wings” que os Cheap Trick interpretam na banda sonora do filme].
P.P. – Felizmente, temos bons compositores a escreverem sobre os grandes temas, sendo o amor – paixão, ciúme, desepero, euforia – o mais comum, mas também política, economia, problemas sociais. No entanto, poucos têm a capacidade de escrever de forma tão bonita sobre as coisas simples do dia a dia, como o Mark escreve... Tomar uma chávena de café, envelhecer, levar uma vida de dona de casa. Vê naturalmente o mundo de um ponto de vista tão poético ou são precisos anos de prática?
M.S. – As duas coisas… Olho para o mundo de forma poética e tenho muitos anos de prática. Na verdade, o que faço muito bem é ouvir! Todas as manhãs, quando agarro num instrumento, penso que é um momento sagrado... Soa a maluquice, mas são os momentos em que não estás a pensar em nada nem a analisar os mais inspirados. Às vezes, é o engano no piano que completa o hook ou que muda a melodia no sentido certo. Mas precisas de ouvir, de prestar atenção. Depois de muitos anos a exercitar este músculo, ficas bom nisso. Neste preciso momento, está um tipo na porta ao lado a usar uma serra elétric, a sério. Comecei a pensar em “juggling chainsaws”, que é um título porreiro para uma canção, mas é preciso estarmos à escuta, mesmo de serras elétricas!
P.P. – Como é o seu processo de escrita habitual? Começa pela letra e depois procura a melodia certa para contar essa história, ou é ao contrário?
M.S. – Acontece tudo ao mesmo tempo. Crio um groove ou uma progressão e canto por cima. Gravo e passo à próxima secção. Depois, vem o refrão. Faço alguma música, canto umas tretas, e depois refino o resultado, altero algumas coisas. Música, letra, gravação -tudo ao mesmo tempo.
P.P. – Deixe-me dizer-lhe que ser fã de Mark Spiro não é uma tarefa fácil. Não há vídeos praticamente nenhuns para ver ou para partilhar nas redes sociais, não há espetáculos para ver... Vai provar-me que estou enganada? A Europa está ansiosa pelo seu regresso. Podemos ter esperança?
M.S. – No minuto em que for convidado para atuar onde quer que seja, estou lá! Se alguém achar que consigo vender bilhetes suficientes para pagar as viagens, vamos embora! Agora, outra ideia... Vou fazer um “espetáculo” uma vez por semana, a partir da minha cozinha, e cantar uma canção ou duas. Talvez filme um esboço do processo de criação, e vamos ver se alguém assiste. O que é que achas?
P.P. – Acho fantástico! E para o resto do ano, o que é que tem em vista? Vai promover os álbuns ao vivo nos Estados Unidos?
M.S. – Sim, vou tentar continuar a promover a minha música e espero fazer alguma diferença, cantar boas melodias e escrever alguns pensamentos provocadores e palavras inspiradoras!
Liliana Nascimento
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