De Atlanta para Nova Iorque, das open mic-nights para a escola das estações do metro e, desde então, dos discos para os imensos palcos espalhados mundo fora, Kaki King, que em 2007 foi carimbada com o selo de qualidade da "Rolling Stone", ao ser considerada uma das novas deidades da guitarra, regressa aos palcos lusos, onde temsido presença regular.

A mini-digressão em solo nacional arranca já hoje na Sala TMN ao Vivo, em Lisboa, passa pelo Teatro Gil Vicente, em Coimbra, e termina no Cineteatro de Estarreja.

De deidade da guitarra à procura de novos caminhos

Tida em conta como um dos atuais prodígios da guitarra, o que distingue Kaki King enquanto instrumentista, para além de uma indubitável destreza, é a consciência rítmica que, mais do que a forma como dedilha ou o modo como incorpora a percussão na guitarra, nos garante ter sido a maior influência roubada aos ensinamentos da bateria, que começou por tocar aos nove anos, sem nunca pousar a guitarra. “Comecei pela guitarra e sempre toquei guitarra. Gostava de pôr cobro aos rumores que dizem o contrário de uma vez por todas”.

À força de muito trabalho e de um empenho tenaz, acrescido à capacidade algo inata que a distingue dos comuns guitarristas, ao longo dos anos e dos discos lançados, a compositora foi abrindo caminho num mundo tendencialmente masculino e ganhando, não só um espaço próprio, como um lugar de topo ao lado de nomes como Jack White, Jonny Greenwood e Tom Morello, com quem integrou a já referida lista dos 20 “Novos Deuses da Guitarra”, lançada em 2007 pela revista "Rolling Stone". Um epíteto que acha simpático, porém, irrelevante, na medida em que considera ser “uma pena que queiram restringir os bons guitarristas a um grupo limitado de 20 pessoas”. A lista exclui, por exemplo, Alex de Grassi e a amiga Nicole Atkins - “uma guitarrista fora de série” -, os guitarristas por quem hoje em dia nutre maior admiração.

Em “...Until We Felt Red” (2006), a favor de outros tipos de experimentação, a guitarra perde um pouco do protagonismo quase absoluto dos dois registos anteriores, “Everybody Loves You” (2003) e “Legs to Make Us Longer” (2004). Kaki explica que “gravar discos só de guitarra é realmente maravilhoso mas, passado algum tempo, é como se tudo me soasse sempre à mesma coisa. Acho que não conseguiria continuar a ser criativa se ao terceiro álbum tocasse apenas guitarra, por isso decidi adicionar mais elementos”. A voz, que até então vinha a funcionar como complemento, foi conquistando terreno revelando-se como um ponto essencial nas novas direções musicais abraçadas pela autora, e por isso recusa um regresso exclusivo à guitarra, sendo que vê “a música instrumental mais como uma linguagem de emoções, enquanto que a música vocal tem uma espécie de contexto intelectual... e ambas são importantes. Agora os meus discos têm uma componente instrumental e uma componente vocal, reúnem o melhor de ambos os mundos.”

Jogo de espiões = Disfarce de emoções

Ainda na demanda da procura de uma sonoridade mais integrativa, recorrendo não só à adição de mais elementos sonoros, mas também à inclusão de mais instrumentistas em estúdio e em palco, nasceu "Junior", o último longa-duração, lançado em 2010. Um álbum que caracteriza como “muito simples, com melodias simples”, daí que tenha sido batizado com nomenclatura adequada, e seja instrumentalmente refletor do convívio entre a cantora e a banda. “Não foi nada sobrepensado, nem nada demasiado emocional”, remata.

Como deixa transparecer à primeira audição, “Junior” vais buscar conteúdo e personagens ao imaginário da espionagem russa. “Acontece que gosto da Guerra Fria. É uma espécie de aspeto cultural bizarro...É uma parte bastante interessante da história. E ao mesmo tempo há uma parte de mim que pensou: talvez pudesse ser uma espiã. Sou música e guitarrista há tanto tempo... Como se parte de mim aspirasse a ter uma identidade secreta fixe... Algo completamente diferente da minha vida".

A ideia da vida dupla pode ser interpretada como a oportunidade para deixar alguns fantasmas descansados, debaixo da cama. Nesse sentido, o último álbum trata-se, como aliás nos confirma, num álbum muito menos pessoal. “Sim, quer dizer, há uma canção que é super pessoal (Sunnyside), mas todas as outras canções são sobre situações hipotéticas que não têm nada a ver comigo. É mais fácil escrever sobre coisas que não têm nada a ver contigo. É menos exigente em termos emocionais e menos cansativo. Ao mesmo tempo, quando escreves sobre coisas que são muito pessoais e muito profundas e pões-nas cá para fora, é como se te libertasses delas, e assim elas deixam de te torturarem como faziam antes. É muito doloroso deitar estas coisas cá para fora, mas uma vez cá fora, já não sofres tanto por elas... Mas ao mesmo tempo esse processo é bastante horrível, e nem sempre me apetece passar por isso".

Músicas novas, aguardam-se

“Junior”, há muito deixou de ser o foco das atenções nas prestações de Kaki King, que revelou recentemente no Twitter que está na hora de trabalhar no sucessor. Sobre isso, porém, ainda não há assim tanto para desvendar, a não ser que o enfoque volta para a guitarra. “Voltei a ser uma guitarrista”, conta-nos Kaki. “Gravar o “Junior” foi muito divertido. Foi interessante porque, para este disco, tive a oportunidade de partir em digressão com uma banda durante algum tempo, e acho que, embora adore tocar com uma banda, adore a muralha sonora imensa que conseguimos criar enquanto banda e adore ver e ouvir todos os músicos a sentirem-se inspirados em palco, há algo de muito verdadeiro em relação a tocar apenas guitarra”, motivo pelo qual, ultimamente, se tem apresentado a solo. “Passei o último ano em digressão, não propriamente a apresentar o “Junior” nem a tocar nada de algum álbum em específico, mas para poder estar em palco, sozinha, com poucas guitarras... Há algo de muito puro nisso, e creio que essa digressão do ano passado teve grande influência sobre onde agora me encontro musicalmente”. O que poderá ser comprovado brevemente, na pequena tour por Portugal, sendo que “parte das minhas atuações ao vivo faz-se a tocar música nova”. “Sinto que estou a tocar guitarra novamente a um nível muito alto”, o que requer muito trabalho. “Tenho despendido muito tempo e muita energia. É como se fosse uma atleta, como se tivesse que exercitar um músculo, por isso conto aparecer e ser a melhor guitarrista que conseguir”.

Apesar de não ser uma estranha em terras lusitanas, Kaki King revela não ser grande conhecedora de música portuguesa. “Vi algumas atuações. Sempre que chego a um sítio é muito complicado... Fico a conhecer o aeroporto, o hotel e, com muita sorte, consigo ter um dia para dar uma volta. No meu caso, preciso de ir a um lugar várias vezes e só assim consigo apanhar algumas palavras e um pouco da língua. Apreendo muito pouco nas 24 horas que passo numa cidade, mas depois, quando volt,o há algumas coisas que já começam a fazer sentido. Por isso, fico sempre bastante entusiasmada por poder voltar aos locais onde estive, porque isso significa que fico um passo mais perto do que lá se passa”.

Da nossa parte, é também com entusiasmo que a esperamos por cá, a solo e com as músicas novas prometidas.

Ariana Ferreira