Mas se os privilegiados dessa noite puderam testemunhar um espetáculo essencialmente enternecedor, mais intimista, pontuado por artifícios de doçura adaptados ao pop, ora solarengo, ora lânguido de então (desde jogos de sombras chinesas a teatralizações mais etéreas), volvidos quase quatro anos, mantendo-se a mesma entrega e carisma, deu-se o ponto de viragem, do abandono dessa brandura a favor da densidade atmosférica, mais assertiva e curiosamente tão mais crescida de “Metals” (2011). Transposto para o registo ao vivo um pouco mais duramente do que em disco, numa mise-en-scène de projeções abstratas, algo orgânicas e cromadas, fundidas com imagens do concerto, adequadas à nova sujidade instrumental, coube ao novo longa duração, lançado ano passado, tomar conta do espetáculo.
Com a ajuda de um conjunto de músicos competentes e com um grande trunfo na manga -as Mountain Man -,Feist liderou uma atuação que, aos poucos, e com pistas lançadas desde o primeiro instante, culminou em total rendição.
As Mountain Man são um trio de cantoras folk norte-americanas de que Feist se muniu nesta digressão e cujos coros em uníssono conferem às canções uma tonalidade mais encantatória e ancestral. A força que acrescentam aos temas, numa jogada muito inteligente com as potencialidades acústicas da sala, fez-se valer desde o primeiro tema, A Commotion.
Introduzido pelo órgão fantasmagórico, numa roupagem diferente da habitual, seguiu-se My Moon My Man, do álbum responsável pela consolidação da cantora enquanto deidade indie, “The Reminder” (2007). Numa versão quase indistinta de tão diferente, mais adiante, Mushaboom, de “Let It Die (2004), a pedir uma coreografia previamente ensinada por Feist e protagonizada pelas meninas do coro, antecedida por uma incursão mais profunda por “Metals”. O destaque recaiu sobre The Circle Married the Line e pelo fascínio partilhado pelo mar de quem nasceu “landlocked” (ou seja, num país sem costa marítima).
Após a constatação de que no Porto há muito mais que portuenses e de que no Coliseu havia visitantes de várias partes do mundo, o coro multicultural constituído pelo público entoou So Sorry, primeiro tema repescado em concordância com o registo original. Seguiram-se duas das maiores subtilezas do novo disco, Caught in the Wind e Anti-Pioneer, com um pequeno arranjo de guitarra digno de banda sonora. O dueto de densidade foi quebrado por I Feel It All, com animação fora e em cima do palco, e ritmo marcado à força de muitas palmas e passos de dança em forma de cumprimentos secretos entre as Mountain Man. Para aproveitar o regresso a “The Reminder”, eis The Limit to Your Love, tema escrito em parceria com o conterrâneo Gonzales e que veio a ser, mais tarde, apropriado por James Blake.
O restante alinhamento da primeira parte foi dominado por “Metals”, com exceção do interlúdio a capella da responsabilidade das Mountain Man, cobertas por mantos cheios de guizos, apresentadas oficialmente através de Bright Morning Stars are Rising, herança do cancioneiro tradicional norte-americano. Comfort Me, com a cantora a insistir num momento sing-a-long à laia de uns Bon Jovi, como a própria referiu, mas que acabou por se revelar bastante dessincronizado, e Get it Wrong, Get it Right ditaram a saída do palco, após os agradecimentos do costume.
Com a chegada ao encore chegaram também os inúmeros pedidos, intercalados pelas declarações de amor gritadas na plateia, reciprocadas pelos constantes galanteios da cantora a Portugal. When I Was a Young Girl nasceu do despique entre a guitarra e a bateria, para dar lugar à restante banda e a Sealion, primeira cedência da noite, seguida na lista e convenientemente requisitada por uma rapariga na primeira fila.
Para o segundo encore Feist entrou sozinha, e depois de algumas confusões e trocas de guitarra, brindou-nos com Secret Heart, que confessou ter reaprendido há pouco tempo. Aproveitando-se de um período de afinação da guitarra alguém clamou, bem alto, por Inside and Out, a que a cantora replicou alegremente que era difícil converter-se numa discoteca de uma mulher só. Porém, estimulada pelo público, a acompanhá-la nos primeiros versos da canção, Feist viu-se obrigada a fazer a vontade, numa versão improvisada a voz e palmas, que há de ter feito todos os presentes no Coliseu sentirem-se ainda mais especiais.
Intuition, com os habituais “Did I” espelhados e repetidos, teria sido a despedida mais que perfeita, mas, chamada em histeria, a cantora deu-nos um terceiro encore, relegando para Let it Die a bonita missão de colmatar a noite que terá deslumbrado todos aqueles que dela fizeram parte.
O cantautor irlandês Fionn Regan, a quem coube fazer a abertura do concerto, tentou quebrar o gelo apresentando-se como Fernando Pessoa. Durante uma prestação muito curta, partilhou com o publico um pouco de “100 Acres of Sycamore”, disco que tem vindo a apresentar ao longo da tourné. O público, apesar de ter parecido desinteressado, correspondeu à canção final, For a Nightingale, com uma valente salva de palmas.
Da nossa parte, esperamos que nos possamos vir a reecontrar com Regan e a ouvi-lo gracejar com os nossos poetas, numa sala mais à medida.
Confere o alinhamento do concerto de Feist:
A Commotion
My Moon My Man
Graveyard
How Come You Never Go There
The Circle Married The Line
Mushaboom
So Sorry
Caught A Long Wind
Anti-Pioneer
I Feel It All
The Limit To Your Love
The Bad In Each Other
Undiscovered First
Bright Morning Stars are Rising (Mountain Man)
Pine Moon
Comfort Me
Get It Wrong, Get It Right
Encore I
When I Was a Young Girl
Sealion
Encore II
Secret Heart
Inside and Out (versão improvisada)
Intuition
Encore III
Let it Die
Fotografias: Filipa Oliveira
Texto: Ariana Ferreira
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